Carlos Alberto Sardenberg, O Globo
O Supremo Tribunal Federal decidiu por sólida maioria (sete
votos em 11) que o foro privilegiado de deputados e senadores deve ser
interpretado de modo restritivo. Em voto bem definido, a Corte resolveu que os
parlamentares só terão direito de serem julgados no STF por crimes cometidos
durante o exercício do mandato e por atos referentes ao exercício.
Claro: se um deputado é processado por uma declaração em
plenário ou por um voto, vai para o STF. Se bate uma carteira ou agride a
mulher, Justiça comum, primeira instância, como todos os demais cidadãos.
Muito bem, só que não vale nada.
O ministro Dias Toffoli, contrário a essa interpretação,
pediu vistas do processo, quando o placar vencedor, os sete votos, já estava
feito. O pedido interrompe o processo até que o ministro o devolva ao plenário.
Ou seja, embora a decisão esteja tomada, o resultado não pode ser proclamado e
entrar em vigor.
O ministro tem prazo para dar “vistas” no processo? Tem.
Algum juiz do STF respeita? Não.
Aliás, o pessoal lá diz assim: em tese, tem prazo, mas na
prática não funciona.
E quanto a isso de um ministro solitário barrar a decisão da
maioria? É assim mesmo, respondem. Mesmo que o tema esteja mais do que
debatido? Mesmo assim.
Em bom português: uma decisão importante, tomada
solenemente, é letra morta, papel inútil.
Todo mundo lá sabe desses, digamos, defeitos na produção de
justiça.
E fica por isso mesmo. No caso, deputados e senadores podem
ficar tranquilos. Em qualquer caso, de corrupção a roubo de carro, serão
julgados no STF, onde a probabilidade de demora e prescrição é muito grande.
E aquela decisão do STF era justamente para barrar esse
privilégio.
Segue a ciranda. Ainda ontem, o Superior Tribunal de
Justiça, instância logo abaixo do STF, suspendeu o julgamento do governador de
Minas, Fernando Pimentel. Aliás, não é ainda o julgamento. A Corte decide se o
governador deve ser tornado réu em crime de corrupção cometido cinco anos
atrás. Quer dizer, julga se deve ser julgado. Por que não vão direto?
Ora, porque não.
Pois então, quando dois juízes já haviam votado pela
aceitação da denúncia, um terceiro pediu vistas. Mesma coisa. Tem prazo para
devolver? Tem. Vale? Não.
E lá segue o governador, a caminho de terminar seu mandato
e, mais, candidatar-se à reeleição.
Agora, se é assim, a gente deveria estender esse direito aos
cidadãos. Já pensou? Você é intimado pela Receita Federal. Pede vistas.
O fiscal da Receita: olha lá, tem que devolver, hein?
E você, como um ministro das cortes: ok, deixa comigo. (No
duplo sentido: deixa que eu resolvo, deixa comigo mesmo).
E os supersalários do funcionalismo? Também caem no
departamento do “fica por isso mesmo".
A coisa está no seguinte ponto: a imprensa já descobriu e
publicou que um juiz do Mato Grosso recebeu mais de R$ 500 mil em um único mês;
que a maioria dos desembargadores dos tribunais estaduais recebe acima do teto
de R$ 33 mil, não sendo raros os vencimentos que ultrapassam os 100 mil reais;
idem para funcionários da elite do Judiciário e Legislativo federais; que
vereadores de pequenas cidades recebem mais de R$ 3 mil por mês para duas
sessões anuais.
No caso dos supersalários, também já foi mais do que
divulgado o truque utilizado: tem o salário, sempre abaixo do teto, e depois as
vantagens pessoais e verbas indenizatórias, que são fora do teto. Na verdade,
não têm limite.
Era legal que valesse também para o cidadão. Você diria à
Receita: ganho mil reais por mês. E os outros 50 mil? Dinheiro pessoal e
indenizatório.
Pode haver fraude mais clara?
Tome-se o auxílio-moradia. É prática normal na empresa
privada quando o empregado é transferido para outra cidade. Recebe uma verba
para mudar e se estabelecer. Isso feito, a verba desaparece, claro. É eventual.
No Judiciário, não. É permanente. E pago inclusive a
desembargadores aposentados, inativos que já ganharam a vida e estão lá nas
suas casas... pagas pelo contribuinte. E muitos aposentados trabalham como
advogados.
Mas se tem preso ganhando auxílio-moradia, o que se pode
esperar? Pois é, o deputado Celso Jacob (PMDB-RJ) está preso na Papuda, caso
único de parlamentar federal julgado, condenado e encanado, e recebe R$ 4.200
mensais da Câmara de auxílio-moradia. A Mesa Diretora da Casa ainda está
discutindo se um deputado preso tem ou não esse direito. Qualquer um sabe que
não. Mas, sabe como é, é tão raro um deputado em cana....
Parece que a presidente Cármen Lúcia não quer que tudo fique
por isso mesmo, ao menos no Judiciário. Decidiu que vai publicar os vencimentos
de todos os juízes do país, especificando salário, verbas e vantagens. O que
passar do teto, vai para o Conselho Nacional de Justiça.
Para cancelar o extrateto?
Não. Para discutir se pode ou não pode ficar por isso mesmo.
A transparência pode constranger.
A ver, mesmo.
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