quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

LULA É O ESTABLISHMENT

Carlos Andreazza, O Globo
Leio com perplexidade análises que projetam no dia 24 de janeiro — data estabelecida para o julgamento de Lula em segunda instância — a solução do problema em que consiste o ex-presidente. Problema que, diga-se, a parcela do Brasil que, por exemplo, beatificou Cármen Lúcia criou (recriou) para todo o país, ao endossar bovinamente o enredo — escrito por Janot e seus meninos, e editado por Fachin — que criminalizou a atividade política e que, afinal, igualou a ação corrupta de grupos em busca de enriquecimento individual ao projeto autoritário de assalto ao Estado para permanência no poder, de captura da máquina pública para financiar a estrutura do partido, promovido pelo PT.
Deu no que deu.
Se rastejam todos os políticos na mesma lama, ora: aí se revitaliza aquele do qual o brasileiro se lembra, aquele experimentado, sob cujo governo — dane-se que origem da crise em que ainda nos afogamos — havia emprego e crédito fartos etc. Se são todos igualmente bandidos, Lula é o mais antigo e conhecido — espécie de segurança na hora de escolher um entre os marginais. Para ele, a lama é medicinal.
E aí?
O homem, carta fora do baralho em 2016, é hoje o melhor produto do jacobinismo de extração janotista, reerguido pela sanha dos justiceiros cuja estupidez agora faz de um Roberto Barroso — o Gilmar do mensalão — o herói na luta contra a impunidade. Parabéns!
Essa é a caça às bruxas em decorrência da qual Lula ganhou de presente um discurso até para falar novamente em golpe: o de que derrubaram o governo popular para pôr no lugar um — segundo a narrativa da facção mais influente do Ministério Público — ainda mais criminoso.
Com esse texto sob medida para palanque, e com a fibra político-eleitoral que a ideia de resistência vende, ademais num ambiente conflagrado por tática desenhada pelo próprio “perseguido”, como supor que mais um julgamento — não importa em que instância — possa frear uma campanha que há meses testa limites e prospera?
Como, aliás, não supor que a provável nova condenação não seja mais combustível à estratégia — fundamentada em vitimização e politização das ações judiciais — que o ex-presidente concebeu para si?
Faz tempo que o “problema Lula” deixou de ser matéria de tribunal. Daí meu assombro ante a expectativa de que a decisão de 24 de janeiro possa significar revés para o ex-presidente; de que a chancela do TRF-4 à sua condenação por Moro tenha a mais mínima chance de tirá-lo do jogo e clarear o tabuleiro de 2018.
É como se não fosse talvez mesmo o oposto: mais uma etapa no projeto de judicialização do processo eleitoral, esse em que Lula investe para tentar se impor formalização de candidatura adentro, mas do qual sairá candidato mesmo que não possa ser.
Alguém duvida de que já nos confinamos a um pleito em que porção relevante do eleitorado — tanto maior quanto mais próximo do dia 7 de outubro Lula for impedido de disputar — votará em desagravo a um cidadão legalmente culpado? De que a eleição do próximo presidente será em parte um plebiscito sobre a tal injustiça cometida contra Lula?
Este é o Brasil: país em que um indivíduo condenado pela Justiça lidera todas as pesquisas, sujeito cuja eventual (improvável) prisão representaria força eleitoral poderosa a ponto de lhe recuperar a capacidade de transferir votos como para Dilma Rousseff. Eis um ponto relevante — a força de Lula para levantar outro poste.
As mesmas pesquisas indicam que — embora ainda considerável — já não é a mesma. É verdade. Mas verdadeiro também é que, uma vez sem Lula, o PT não terá candidato — a ser de todo construído — como Dilma. Jaques Wagner, por exemplo.
Um político profissional, que governou a Bahia por dois mandatos e cuja proeminência eleitoral no Nordeste pode compensar fração da perda de alcance do ex-presidente para terceirizar votos. Que o leitor não se iluda: o candidato do PT — Lula ou não — estará no segundo turno. Lula ou não, Lula será.
Há mais a ser considerado.
Não são poucos os agentes políticos — inclusive adversários — que torcem (trabalham) por Lula em 2018. Não para que vença a eleição (se acontecer, porém, paciência); mas a que chegue a outubro livre para disputá-la. O que está na mesa é a conservação do sistema; circunstância em que pouco interessará a saúde do país. Convém atentar para a agenda tanto do STF — principal garantidor da insegurança jurídica no Brasil — quanto do TSE.
Não é só a presumível revisão da jurisprudência que hoje autoriza o cumprimento de pena após condenação em segunda instância; mas também a possibilidade de que se afrouxem os critérios de inelegibilidade definidos na lei da Ficha Limpa.
Lula é a força em função da qual todos os atores políticos se organizam: a âncora de previsibilidade eleitoral, que confere memória à disputa e interdita brechas à ascensão de outsiders. Mas não somente; pois também é o termômetro que afere a temperatura da Lava-Jato.
O cálculo sobre sua sobrevivência é ciência exata: se, com tudo que corre contra si, condenado em primeira instância, sentença virtualmente confirmada em segunda, sujeito a ser ainda (provavelmente neste ano) apenado no processo relativo ao sítio de Atibaia, conseguir concorrer à Presidência, terá sido porque a operação fracassou. O raciocínio consequente é óbvio: se ele — ainda que derrotado nas urnas — vencer, ninguém mais cairá.
Lula é o indulto de Natal do establishment projetado para 2018.
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