O futebol, como tudo, evoluiu, tornou-se mais ensaiado e
mais cientificamente estudado
Hoje, no Brasil, só se fala no jogo com o México. Talvez o
mesmo não seja verdadeiro por lá. No domingo, foi dia de eleições
presidenciais, e a esquerda estava bem à frente, com Andrés Manuel López
Obrador. No passado, as eleições mexicanas eram decididas nos bastidores de um
partido, o Revolucionário Institucional (PRI). Agora, são para valer.
Foram eleições sangrentas, pois lá, como aqui, a violência é
um fato cotidiano. Quarenta e oito pessoas — candidatos ou pré-candidatos —
foram assassinadas no processo, entre elas, oito mulheres. O México que joga
contra o Brasil talvez não esteja preocupado com Cavani, Lukaku ou Mbappé, e
sim com o presidente Trump, que é o principal adversário no horizonte.
Os argentinos deram adeus. Ao contrário de grande parte dos
brasileiros, tenho simpatia por eles. Pelo menos no passado, jogavam com alma,
e isso é o bastante para me conquistar. Assim como Santo Agostinho em relação
ao tempo, sei o que é alma, mas, se me perguntarem, não consigo definir.
Talvez possa falar de algumas expressões de alma, uma
centelha, um brilho, uma garra, que não são idênticos ao talento e à técnica.
Desde menino observo a alma, essa substância invisível, translúcida, e todos os
golpes que o avanço econômico aplicou nela. A rígida divisão de trabalho,
burocráticos prazos, tudo isso contribui para que se façam as coisas sem alma.
Charles Chaplin de certa forma toca no tema no filme “Tempos
modernos”, de 1936. Hoje, a situação não é a mesma, mas o trabalho tornou-se
supérfluo. Como buscar sentido no ofício, se o futuro aponta para a sua
destruição?
Não queria tratar desse tema com pretensões intelectuais.
Baseio-me na torcida do Flamengo, que não pode ser acusada de grandes voos
teóricos. Basta olhar a história do clube para constatar que muitos ídolos não
o foram precisamente pelo talento e pela técnica.
Celebrizado pela canção de Jorge Ben, Fio Maravilha chegava
ao gol com emoção e raça. Só não entrava com bola e tudo por humildade. Fio
Maravilha, nós gostamos de você. Depois dele, Obina, com o mesmo jeito
atrapalhado, mas uma grande vontade e o carinho da torcida, apesar da técnica
precária e de uma tenebrosa pontaria.
O futebol, como tudo, evoluiu, tornou-se mais ensaiado, mais
cientificamente estudado. Talvez não exista mais lugar para Fios e Obinas. Fio
Maravilha tornou-se entregador de pizza em São Francisco. Se conseguir se
divertir com os bondes como se divertia com a bola, subir ladeiras abraçado
numa marguerita com o fervor com que entrava nas áreas, nem tudo estará
perdido.
Não se trata de negar a excelência e o avanço científico.
Suspeito que o hipotético encontro de um time de hoje com um time do passado
resultaria em goleada. Não creio que a vida possa ser sintetizada num jogo.
Mas, se pudesse, o futebol seria muito melhor candidato do que o xadrez.
Num dia como hoje, portanto, ganhem ou percam, mas, por
favor: com alma. Isso é decisivo não só contra o México, mas sobretudo contra
os belgicanos, como dizia um locutor antigamente.
Talvez realize-se aí o duelo entre os dois melhores do mundo
na atualidade. Há pouco espaço para cai-cai, estilista, limpeza de pele, pensem
que no sofri etc. Seremos nós contra eles, e o mundo dos amantes do futebol
olhando.
Artigo publicado no O Globo em 01/07/2018
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