Todo governo recém-eleito pode muito, inclusive em relação
aos Congresso e ao Supremo, mas não pode tudo. É uma espécie de beabá da
relação entre os Poderes e com a sociedade, mas isso não significa que tudo
será como antes no quartel de Abranches, como alguns imaginam. Estamos diante
de um governo visceralmente diferente de todos os que passaram pela Esplanada
dos Ministérios, inclusive o do ex-presidente Fernando Color de Mello, cuja
eleição é a que mais se aproxima da de Jair Bolsonaro do ponto de vista
eleitoral, com a diferença de que a eleição do primeiro foi solteira e não
desarticulou o sistema partidário que depois o apeou do poder.
A eleição de Collor foi beneficiada pela “cristianização” da
candidatura de Ulysses Guimarães. Não se pode dizer exatamente o mesmo do
ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que era um estranho no ninho
peemedebista. Mas a adesão de forças políticas por gravidade no segundo turno
foi igualzinha. Outra semelhança é a ausência de uma base parlamentar
articulada em termos de coalizão partidária. Na política externa, Collor foi
multilateralista, enquanto Bolsonaro é “trumpista”; na política econômica, o
ex-presidente transformou seu projeto liberal num estelionato eleitoral, por
causa do confisco da poupança, enquanto Bolsonaro promete fazer ajuste fiscal
de arrombar, para viabilizar seu programa ultraliberal.
O senso comum aponta para um governo conservador na política
e nos costumes, assumidamente de direita do ponto de vista ideológico. Essa é a
cara do governo nas redes sociais, escolhidas como terreno mais favorável para
o embate com as forças derrotadas na eleição. O novo modelo de comunicação do
governo reproduz a estratégia vitoriosa da campanha eleitoral, mas será que vai
funcionar? Bolsonaro (PSL) anunciou, por exemplo, que realizará uma live
semanal no Facebook para comunicar as ações de governo, repercutindo-a no
Twitter. Esse é o padrão do presidente norte-americano Donald Trump. Há um certo
desconhecimento de que a comunicação do governo é institucional e dela depende
a interação com a sociedade no dia a dia.
Segundo Bolsonaro, “o poder popular não precisa mais de
intermediação” e graças a isso manterá uma comunicação direta com os eleitores.
Embute a ideia de uma democracia plebiscitária, que não respeita a oposição nem
as minorias; com sinal trocado, é o mesmo equívoco de setores de esquerda que
defendem a democracia direta, ou seja, a substituição da democracia
representativa, a subalternização dos demais poderes constituídos da República,
principalmente o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o
analista político Murilo Aragão, esse modelo pode funcionar muito bem enquanto
o governo goza de grande popularidade, mas tende a gerar tensões com os grandes
meios de comunicação e o sistema político tradicional.
Orçamento
“A exploração das redes, assim como certas ações de Bolsonaro, como conceder uma de suas primeiras coletivas de imprensa, após ter vencido a eleição presidencial, em cima de uma prancha de surfe, ou aparecer na semana passada vestindo camisa Nike, ou realizar flexões e praticar tiro em visita à sede do Bope, ajudam a manter a imagem de “mito” e de político “antissistema”, avalia Aragão. Na rotina da administração pública, porém, a vontade política do governante não basta, é preciso ter legitimidade nas ações. Ou seja, é absolutamente necessária uma justa relação entre a chamada ética das convicções, que move os políticos, e a ética da responsabilidade, que pauta a alta burocracia, tensão clássica da democracia. Nesse aspecto, há contradições instaladas no governo que podem ser determinantes para sua imagem futura
“A exploração das redes, assim como certas ações de Bolsonaro, como conceder uma de suas primeiras coletivas de imprensa, após ter vencido a eleição presidencial, em cima de uma prancha de surfe, ou aparecer na semana passada vestindo camisa Nike, ou realizar flexões e praticar tiro em visita à sede do Bope, ajudam a manter a imagem de “mito” e de político “antissistema”, avalia Aragão. Na rotina da administração pública, porém, a vontade política do governante não basta, é preciso ter legitimidade nas ações. Ou seja, é absolutamente necessária uma justa relação entre a chamada ética das convicções, que move os políticos, e a ética da responsabilidade, que pauta a alta burocracia, tensão clássica da democracia. Nesse aspecto, há contradições instaladas no governo que podem ser determinantes para sua imagem futura
Talvez o epicentro dessa contradição já esteja instalado no
Itamaraty, onde o novo chanceler Ernesto Araújo surpreende os colegas a cada
dia. Toda uma geração de embaixadores está aterrorizada com a possibilidade de
deixar os postos e amargar um fim de carreira no ostracismo. Mas essa tensão
também ocorre no superministério criado para o ex-juiz federal Sérgio Moro,
escalado para combater a corrupção na administração pública e enfrentar o
problema do crime organizado. A primeira tarefa do novo ministro da Justiça tem
maior caminho andado, por causa da Operação Lava-Jato; a segunda é o grande
problema, como está patente no caso do Rio de Janeiro, onde o novo governador
Wilson Witzel cedeu às corporações e deu status de secretários ao Chefe da
Polícia Civil e ao Comandante da Polícia Militar, jogando por terra o trabalho
feito pelos generais interventores para reorganizar o sistema de segurança
fluminense.
O maior desafio do governo Bolsonaro, porém, é a gestão da
economia. O Orçamento da União de 2019, estimado em R$ 3,381 trilhões, com
previsão de crescimento de 2,5% do PIB e com inflação da ordem de 4,25%, engessa
o novo governo. O salário-mínimo será reajustado em 5,45%, chegando a R$ 1.006
em 1º de janeiro. Já a taxa básica de juros (Selic) deve fechar 2019 em 8% ao
ano e o dólar, em R$ 3,66, de acordo com a estimativa. A previsão de deficit
para as contas públicas foi mantida em R$ 139 bilhões, mesmo patamar de 2018,
incluído o reajuste de 209 mil servidores civis ativos e 163 mil inativos em
2019. Para o ministro da Economia, Paulo Guedes, para mexer nisso aí, tem que
aprovar a reforma da Previdência a toque de caixa. É aí que entra a política e
a necessidade de cortar na própria carne para dar bom exemplo.
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