O romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
Antônio de Almeida, publicado integralmente em 1854, é um manual da picardia
característica dos cariocas e fluminenses. Faz uma espécie de “fusion”
identitária entre classe média e as camadas populares do Rio de Janeiro, na
qual traça o arquétipo da malandragem. Foge das características do romantismo
brasileiro da época, porque seu personagem principal, Leonardo, é um cara muito
esperto, que se torna sargento graças à proteção de seu padrinho, Major
Vidigal. Não é um herói nativista ou patriótico, capaz de servir de paradigma
de nobres costumes para construção da identidade nacional, como outros
personagens da literatura da época.
Como retrata a vida no Rio de Janeiro por ocasião da chegada
de D. João VI e da corte portuguesa, em 1808, foge à regra das histórias
baseadas no cotidiano das elites cortesãs, embora também faça a crítica do
comportamento delas. É uma mistura de romance picaresco e crônica dos costumes,
cuja originalidade e importância aumentam com o tempo, porque mostra
características identitárias que se afirmaram como permanentes ao passar dos
anos. Coube ao acadêmico Antônio Cândido destacar a importância literária do romance
escrito em forma de folhetim e publicado originalmente no Correio Mercantil,
entre 1852 e 1853.
No ensaio Dialética da malandragem, um marco da crítica
literária no Brasil, Antônio Cândido mostra que o romance de Manoel Antônio de
Almeida estabelece um nexo entre a ordem e a desordem, a primeira representada
pelo Major Vidigal; a segunda, por Leonardo, mas ambos oscilam entre um polo e
outro: ordem e desordem se articulam solidamente, mas “o mundo hierarquizado na
aparência se revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam”.
Manuel Antônio de Almeida não faz juízo de valor sobre os personagens, cujas
ações certas e erradas se misturam. Na sua obra, como na vida, o bem e o mal se
contrabalançam a todo instante.
Entre o bem e o mal
É nesse universo que os extremos são mitigados um pelo
outro. Não existe moral no livro, somente as ações e resultados. A leitura do
romance ajuda a compreender a complexidade do problema das milícias do Rio de
Janeiro, quando nada porque sua origem são as entranhas da força policial
criada por Dom João VI logo após chegar ao Brasil, para manter a ordem na nova
sede de seu império. Não há rebelião política ou guerra na história do Brasil,
desde 1809, na qual a Polícia Militar do Rio de Janeiro não tenha estado presente.
O outro lado da moeda é o achaque, a contravenção e a venda
de serviços de proteção por elementos ligados ou oriundos da Polícia Militar
fluminense. No caso do Rio de Janeiro, o colapso dos esquemas de corrupção
política tradicionais, que operavam na administração direta e nas estatais,
momentaneamente, fortaleceu o poder político das milícias, que agora rondam o
Palácio do Planalto. Predominantemente formadas por ex-policiais militares,
operam na economia informal, principalmente na prestação de serviços de toda
ordem: do transporte de van ao gatonet, do fornecimento de gás à cobrança de
agiotas, da proteção aos bicheiros à partilha do tráfico de drogas, da
receptação de cargas coligadas ao contrabando, da grilagem de terra aos
condomínios irregulares, dos serviços de segurança às execuções. Não existe
protesto de título em cartório nessa economia informal, a cobrança de dívidas é
feita à bala. Não é à toa que os índices de investigação de homicídios são
baixíssimos. As milícias do Rio de Janeiro são hoje uma tremenda força política
e eleitoral, cujo poderio não deve ser subestimado.
Trairagem
O secretário-geral da Presidência, Gustavo
Bebianno, perdeu o cargo porque teria vazado informações e fotos sobre as
relações do clã Bolsonaro com o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da
Nóbrega, acusado de ser um chefão do “Escritório do crime”, grupo de extermínio
das milícias do Rio de Janeiro sob investigação do Ministério Público Federal
(MPF). Bebianno é aliado de Paulo Marinho, primeiro suplente de Flávio, que
caiu em desgraça antes da posse, e do general Hamilton Mourão, vice-presidente
da República, quem mais tentou mantê-lo no cargo. No Palácio do Planalto, há
muita teoria da conspiração na suposta traição de Bebianno a Bolsonaro.
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