O EXÉRCITO VAI PAGAR UM TOUR MILIONÁRIO DE CORONÉIS PELA
EUROPA
O ROTEIRO COMEÇA por Paris. O dia é livre, mas
há a opção de conhecer o Palácio
de Versalhes. Depois, o grupo segue para a Galeria Lafayette,
uma luxuosa loja de departamentos que impressiona pela arquitetura. O grupo
passa mais um dia na Cidade Luz antes de seguir de ônibus para Bruxelas, na
Bélgica. Lá, são dois dias de atividades para os homens, mas suas mulheres
podem aproveitar um city tour. As noites são livres, perfeitas para experimentar
a tradição cervejeira do país.
A próxima parada do roteiro é a Alemanha, começando pelas
cidades de Munster e Hamburgo. De novo, há atividades apenas para os homens –
as mulheres podem, se quiserem, conhecer a cidade em um passeio incluso no
pacote. A última parada é Berlim, onde os casais podem visitar o imponente
castelo de Charlottenburg. De volta ao Brasil, eles ganham uma folga
para se recuperar do cansaço da viagem.
Esse é o roteiro da Viagem de Estudos Estratégicos ao
Exterior promovida pelo Curso de Política Estratégica e Alta Administração do
Exército, o CPEAEx, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme.
Em 2017, uma viagem do curso custou pelo menos R$ 1 milhão.
Estadia em hoteis ‘4 ou 5 estrelas’
O Intercept teve acesso à programação da
viagem dos oficiais, prevista para próximo outubro. O roteiro descrito nos
primeiros parágrafos dura 16 dias. A comitiva brasileira tem cerca de 78
pessoas – os nomes não foram divulgados pelo Exército – e todas ficarão
hospedadas em hotéis de 4 ou 5 estrelas, a um custo total de hospedagem de 2
mil euros por pessoa (cerca de R$ 9,1 mil, na cotação da última semana de
abril). Segundo os documentos, as mulheres dos oficiais estão incluídas na
programação – há, inclusive, um roteiro específico para elas. O Intercept não
irá publicar o material para preservar a segurança das fontes.
A viagem tem fins educativos, é claro. Enquanto as mulheres
fazem city tours, os oficiais visitarão o Ministério da Defesa e a equivalente
à Eceme da Alemanha, assistirão a apresentações de embaixadores e militares
franceses e visitarão a OTAN. Na comunicação oficial do Exército, há destaque para as parceriasesperadas para a viagem, como a
assinatura de um memorando de entendimento com o Defense Studies Department do
Reino Unido.
O Curso de Política Estratégica e Alta Administração do
Exército foi criado
em 1986 pelo então presidente José Sarney. É voltado aos oficiais que
já têm o Curso de Altos Estudos Militares e visa habilitar os militares aos
cargos de generais de brigada, divisão, armas, quadros e serviços. Os coronéis
que participam dele são selecionados “por mérito”.
O curso dura um ano – e, no final, a viagem de estudos já
virou tradição. O objetivo é preparar os coronéis “para o assessoramento de
alto nível aos altos escalões do Exército, do Ministério da Defesa e do Poder
Executivo”, me explicou o Centro de Comunicação Social do Exército, em resposta
a perguntas que eu fiz via Lei de Acesso à Informação. Neste contexto, a viagem
serve para “ampliar a projeção” da instituição no cenário internacional e
“fortalecer a dimensão humana”. Segundo o Exército, o roteiro da viagem inclui
visitas a órgãos militares e civis “relacionados aos níveis político e
estratégico”.
Museus, cervejas e selfies
Em 2016, a viagem durou 11 dias, e a comitiva percorreu
Madri e Bruxelas antes de chegar a Paris. O coronel Anderson Clayton Francisco
fazia parte do grupo e é um dos poucos que tem a despesa
da viagem especificada no Portal da Transparência: foram R$ 10,2 mil
em passagens aéreas. Não estão ali, no entanto, os gastos da viagem de sua
mulher, Evelcy, que esteve nas mesmas cidades europeias nas mesmas datas descritas
no programa.
A viagem dela, segundo suas postagens no Facebook, começou
por Toledo, na Espanha, de onde há fotos de um passeio acompanhada de uma
comitiva só de mulheres. De lá, seguiu para Bruxelas – também com o grupo. Por
fim, em 9 de outubro, a comitiva feminina visitou o Palácio de Versalhes, na
França. O Exército garante que custeia apenas as despesas dos oficiais.
Em 2017, o Boletim do Exército publicou a lista dos oficiais designados para a viagem
de estudos. O roteiro incluiu Paris, Londres, Irlanda do Norte e Bruxelas,
entre os dias 6 e 18 de outubro de 2017. Para a viagem, foram designados 52
oficiais da Eceme. Segundo a nota, assinada pelo comandante, “a missão está enquadrada
como eventual, militar, sem mudança de sede, sem dependentes e será realizada
com ônus total para o Exército Brasileiro”.
Mas, mais uma vez, as lembranças de viagem no Facebook
contam outra história. Em seus registros, publicados sem restrição de privacidade
na rede social, o coronel Roger Herzer não economizou nas fotos em museus,
restaurantes, bares e passeios, muitas vezes ao lado da mulher e de amigos
também acompanhados das cônjuges. Segundo dados do Portal Transparência, Herzer recebeu R$ 14.092 do Exército – portanto, verba
pública – para trocar por euros e gastar em diárias no exterior. A quantia foi
paga a todos os oficiais que viajaram na comitiva brasileira.
Em muitas fotos, Herzer e a mulher estão acompanhados do
coronel Mario Flávio Brayner e a esposa, Alyne. A viagem pela Europa, postada
ostensivamente nas redes sociais, incluiu o Moulin Rouge e a Torre Eiffel, em
Paris, bares em Bruxelas e museus na Alemanha.
R$ 1 milhão do nosso bolso
É difícil estimar quanto exatamente a viagem custou ao bolso
do contribuinte – no Portal da Transparência, os gastos estão espalhados,
classificados sob diferentes rubricas e não foram classificados como “viagem”.
Encontramos, no entanto, R$ 881 mil só para diárias para a “viagem de instrução
do CPEAEX 2017″. Foram R$ 15 mil para cada um dos oficiais comprar 3,8 mil
euros, na cotação da época. Cada militar teve à sua disposição o equivalente a
R$ 1,7 mil para gastar por dia na Europa.
Ainda há os gastos de passagens. Em junho de 2017, o Exército
comprou pelo menos 62 passagens internacionais – 40 de uma vez e depois mais 22, no valor de R$ 4,5 mil cada. Foram gastos
R$ 289 mil de passagens – um valor que veio dos cofres do governo federal, ou
seja, do seu bolso. No total, a viagem de estudos de cada um dos oficiais em
2017 custou quase R$ 21 mil, um valor total de pelo menos R$ 1,170 milhão.
Ainda não estão disponíveis no portal os gastos previstos
para a viagem de 2019, tampouco a lista de participantes. O Intercept,
porém, teve acesso a uma lista com 76 pessoas que, teoricamente, irão viajar em
2019. Ela inclui os oficiais e suas esposas. Os nomes coincidem com os alunos
do curso de 2019, divulgados publicamente no Boletim do Exército. Se a média de gastos
for a mesma de 2017, podemos prever que a viagem à Europa de cada casal custará
R$ 30 mil entre ajuda de custo, passagens e hospedagem – em um total de, pelo
menos, R$ 1,1 milhão.
Os documentos obtidos pelo Intercept incluem
as esposas na compra de passagens, hotéis e programação de city tours. Mas,
questionado via Lei de Acesso à Informação, o Exército diz que que os gastos da
viagem “cobrem, unicamente, as despesas com os militares designados em Portaria
do Comandante do Exército” e obedecem à Lei 5.809, de 1972. Sancionada pelo
ditador militar Emílio Médici, a
lei estabelece as regras para os servidores da União em serviço no
exterior. Ela determina que, em missões eventuais – caso da viagem dos oficiais
–, o estado deve arcar apenas com o transporte do servidor.
A previsão de gastos em ajuda de custo para esse ano,
segundo o Exército, é a que está no decreto 6.576: US$ 390 por dia para um
oficial superior em país europeu – R$ 15 mil por oficial. Para fins de
comparação, uma viagem para a Europa, por duas semanas, sai por cerca
de R$ 10 mil por pessoa já com as passagens. O Exército gastou o dobro
disso para cada um dos coronéis. Os valores deste ano, no entanto, só serão
divulgados depois da viagem.
Oficialmente, o Exército confirma que custeará a viagem de
61 militares em 2019 (quatro instrutores e 57 alunos). Apesar de as esposas
estarem na lista de viagem, a instituição garante que vai bancar apenas os
servidores. “A Eceme não se envolve em questões relacionadas aos
acompanhantes”, disse o Exército, em resposta via Lei de Acesso à Informação.
“A eventual presença de familiares juntos aos militares ocorre segundo critério
pessoal, sem custos para a união e sem prejuízo das atividades de instrução.”
Correção: 2 de maio de 2019, 17h32
Este texto inicialmente afirmou que as diárias em países europeus eram de R$ 390. Na verdade, são de US$ 390. O texto também foi atualizado para dar mais clareza sobre o motivo pelo qual o documento no qual se baseia a reportagem não foi publicado.
Este texto inicialmente afirmou que as diárias em países europeus eram de R$ 390. Na verdade, são de US$ 390. O texto também foi atualizado para dar mais clareza sobre o motivo pelo qual o documento no qual se baseia a reportagem não foi publicado.
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