Abraham Weintraub, o moleque malcriado da sexta série que
ocupa a pasta da Educação, chamou a mãe de uma internauta de “égua sarnenta e
desdentada”. Aqui e ali, pedem sua demissão, como se fosse possível, por essa
via, lavar com sabão a boca do governo Bolsonaro. Esquece-se, no processo, a
fonte da controvérsia e do insulto. O tuíte inicial do ministro, uma faísca de
nonsense antirrepublicano, ilumina a alma inteira do novo partido de Bolsonaro.
A peça acusa o “traidor” Deodoro da Fonseca de, pela
Proclamação da República, entregar o Brasil “às famílias oligarcas que, além do
poderio econômico, queriam a supremacia política”. Junto, a imagem de Deodoro
ao lado da montagem fotográfica de um Lula na farda, na barba e no bigode do
marechal.
Na superfície, é “guerra cultural” barata: uma operação de
descontextualização histórica destinada a atacar a elite política (“famílias
oligarcas”), associando-a ao lulismo, para promover a ideia de um poder
superior capaz de personificar a unidade da nação (Bolsonaro).
No fundo, é a exposição mais completa que um seguidor inculto
de Olavo de Carvalho conseguiu produzir do ralo mingau filosófico do mestre.
Trata-se, portanto, de uma imagem radiográfica das ideias que circulam no
núcleo do bolsonarismo.
O contexto evita enganos. Lula, um dia, elogiou o
“planejamento de longo prazo” do governo Geisel; Bolsonaro, todo dia, elogia a
tortura do regime militar. Nenhum deles faz da ditadura militar sua referência
política. O primeiro identifica-se com o nacionalismo estatista; o segundo
exalta a violência e a aversão à democracia. O tuíte de Weintraub diz tudo. O
inimigo ideológico de Bolsonaro é a República —não, precisamente, a república
brasileira de 1889, mas o próprio conceito de República.
As repúblicas podem ser democráticas, oligárquicas,
caudilhescas, autoritárias ou totalitárias. Mas no cerne do conceito está a
ideia de soberania popular. A semente remota, cravada na fronteira entre
história e mito, encontra-se no estabelecimento da República Romana (510 a.C.).
As repúblicas contemporâneas nasceram nos EUA (1776) e na França (1792). A lei
geral, a igualdade perante a lei —eis o fundamento filosófico da República. É
contra isso que se insurge a “filosofia” do Bruxo da Virgínia.
No rastro da Revolução Francesa, pensadores
ultraconservadores deploraram o caráter “antinatural” da insurreição (Edmund
Burke, 1791), a “abolição de todas as distinções e funções hereditárias”
(Joseph De Maistre, 1796), a “degradação moral” derivada da “marcha combinada
do ateísmo, do materialismo e do republicanismo” (Louis de Bonald, 1796).
A nostalgia das tradições antigas, das hierarquias
petrificadas, da família patriarcal, de um mundo regido pela espada e pela cruz
emergiu da turbulência revolucionária. O Bruxo da Virgínia goteja a água dessa
poça nas línguas secas de seus alunos ignorantes.
Um artigo de Roberto Romano ajuda a entender as origens
medievais da extrema direita. Nos delírios do núcleo bolsonarista, trata-se de
restaurar uma ordem perdida, assentada numa escala de privilégios “naturais”,
protegida pela palavra dos sacerdotes (bispos) e pelos exércitos privados dos
nobres (milícias).
O problema de Weintraub não é Deodoro, mas a ruptura
política que inaugurou a modernidade. A República, cidade sem Deus, conduz a
Lula —eis o que o ministro da falta de educação aprendeu com o mestre
charlatão.
Lá atrás, o charlatão lançou um alerta sobre os generais de
Bolsonaro, mirando a cartilha de Comte e Constant: “o problema é que o
positivismo abre as portas para o comunismo”. Hoje, desse lado, ele não tem
motivos para se preocupar. Nos 130 anos da República, os militares da Esplanada
seguem fiéis a um presidente antirrepublicano pois esqueceram o que aprenderam
e queimaram o que adoraram.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue:
História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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