segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O NOVO VALOR DO ZERO

Janio de Freitas, Folha de S.Paulo
Zero. É apenas um cisco de vergonha, não uma quantidade, que se encosta na verdade para estabelecer em 0,1% o crescimento econômico da América Latina neste ano, na mais recente estimativa da Cepal —a instituição mantida pela Organização das Nações Unidas para estudo da economia regional.
Zero de crescimento e, no entanto, excetuada a Venezuela, as classes altas não estiveram queixosas em nenhum país desta geografia do desemprego, das favelas, de vida com R$ 4,50 por dia, de morte pela falta de saneamento e violência sem limite. Da desigualdade e da injustiça como princípios básicos de cada país.
Não é preciso lembrar por que as classes altas não estiveram nem estão queixosas dessas políticas econômicas nacionais.
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes não faltam com a já esperada contribuição ao divisionismo. O estudo da Cepal coincide com as atuais previsões daqui mesmo sobre o crescimento brasileiro neste ano.
Da campanha até à posse, os dois falavam em crescimento de 3%, e mesmo de 3,5% neste ano. O previsto está em 0,8%. A caminho da adesão às 17 economias, entre as 20 da região, já comprometidas com o ano de desaceleração. Mas as nossas classes altas não emitiram, até agora, nem a mais sussurrante insatisfação com algo do governo Bolsonaro. Bem ao contrário.
Os casos do Chile e da Bolívia são resumos perfeitos da América Latina. O Chile convulsionado seguia para crescer no ano quase 2%. Mas, fora as classes altas, os chilenos estão nas ruas, manifestando-se ou combatendo, por redução das usurpações e das opressões econômicas a que são submetidos.
Diz o noticiário que já são “mais de 25 mortos e mais de 200 com lesões nos olhos”. E, inerte, o que o governo Sebastián Piñera —um dos mais opulentos empresários do país— tem afinal a propor, “para a pacificação”, é um plebiscito em abril, daqui a cinco meses, sobre o tipo de Constituinte. É claro que pensa no esmorecimento da rebelião, para voltar ao que Paulo Guedes definiu como “paraíso chileno”. Explosivo, porém.
Recordista de golpes, país mais pobre do grupo latino-americano, embora seu território riquíssimo, a Bolívia enfim experimentou com Evo Morales quase 15 anos de estabilidade. Nesse período, o crescimento econômico, sem precedente, foi de 5% ao ano.
A pobreza, da ordem de 60% da população na posse de Morales, foi reduzida a quase 30%. As medidas de inclusão dos indígenas não se fizeram à custa dos abastados históricos, que não tiveram queixas econômicas.
O caudilhismo de que a direita brasileira acusa Evo Morales, por pretender o quarto mandato, não encontra justificativa no estilo que praticou, como o de seu decisivo companheiro de governo, o cientista e vice Álvaro García Linera.
A situação degenerou com os estímulos oposicionistas à rebelião de policiais, em resposta a decisões de governo contra a escandalosa corrupção da polícia. A campanha contrária à candidatura e logo à eleição da dupla prosperou com facilidade.
Mas o que precipitou a intervenção do comando militar na crise foi o chamado de Morales a uma nova eleição. Proposta que resolvia as acusações de fraude e dava outra oportunidade à oposição. Recusá-la seria desmoralizante. Aceitá-la? E se Morales ganhasse outra vez?
Melhor ativar os generais do que responder à proposta. Antes de acabar a semana, “mais de dez mortos”, centenas de feridos, convulsão instalada e uma falsa presidente apoiada pelo governo Bolsonaro, como o falso presidente venezuelano Juan Guaidó (Bolsonaro é adepto de falsas presidências).
Há, contudo, a inclusão da América Latina no recurso à violência urbana em progressão. Como na França dos coletes amarelos, na Espanha dos separatistas, no Equador do já derrotado Lenín Moreno, no “paraíso chileno”, na prosperidade interrompida da Bolívia, nos bravos de Hong Kong: quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate. É parte da fase global de transformações, à qual o Brasil, até agora, não fugiu.
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