Seiscentos dias, em mais de 500 anos, sem resposta
“Na condição de protagonistas, oferecemos ao Estado e a
sociedade brasileira nossas experiências como forma de construirmos
coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política”, registrava a carta
da Marcha
das Mulheres Negras, de 2015, com a mesma generosidade que historicamente
tem sido exercida nos cuidados de toda a população brasileira, por nossas
ancestrais e irmãs, que tanto fizeram para que hoje estejamos aqui.
No trabalho doméstico, como babás, enfermeiras, assistentes
sociais, professoras, escritoras, ativistas, governadoras, deputadas e
vereadoras temos colocado nossos
corpos e saberes a serviço da vida e do bem viver de todas e todos. Em
troca temos recebido baixos
salários, invisibilidade e diversas
formas de discriminação racista e sexista.
Isso quando não nos clamam como incompetentes ou nos rotulam conforme nossa
cor, corpo, jeito, cabelos.
O feminicídio e o encarceramento das nossas crescem
exponencialmente. Enterramos nossos pais, irmãos, filhos e entes queridos
depois de mortes violentas e precoces. E se superamos as inúmeras barreiras que
nos separam dos espaços de poder institucional, podemos levar quatro tiros na
cara, 13 no total.
Dos racistas não esperamos nada de diferente. Mas enquanto
isso, nós que estamos vivas, de pé, nos comprometemos a não descansar até que a
guerra contra o nosso povo acabe. Lutamos e lutaremos por justiça, espalharemos
sementes, defenderemos a memória e multiplicaremos o legado de Marielle
Franco. Oferecemos todo o nosso apoio às mulheres, pessoas negras e
faveladas que queiram ocupar a política e outros espaços de poder.
Organizadas em 104 diferentes entidades do movimento negro,
temos promovido ações de incidência política no Congresso e em instâncias
internacionais de direitos humanos, como a Coalizão Negra Por Direitos.
Estamos articuladas para mostrar a todas e todos que
qualquer política de segurança pública precisa ser desenhada a partir de dados
e evidências, com a participação das pessoas mais vulneráveis, e não de
convicções carregadas de ideologias racistas vendidas como isenção e
neutralidade, como é o caso do pacote de morte, falsamente chamado de pacote anticrime,
de Sergio
Moro.
Para ampliar nossa ação, precisamos repactuar alianças com
aquelas e aqueles que reconhecem nossa humanidade e estão do nosso lado na luta
antirracista. É urgente criar mecanismos para que o Estado interrompa a
promoção do genocídio em curso. Genocídio já reconhecido pelo próprio Estado,
nos relatórios da Câmara e do Senado, de 2016, da CPI do Assassinato de
Jovens.
E o mais urgente: qual a ligação da
família Bolsonaro com
o assassinato de Marielle Franco? Não podemos conviver com a possibilidade
evocada pelo nome do presidente da República e de seus filhos, que ocupam
cargos no Poder Legislativo, estar citado em inúmeras ligações com os suspeitos
deste crime: desde possíveis coincidências, como a vizinhança no mesmo
condomínio da Barra da Tijuca ou fotografias nas redes sociais, até os fatos
objetivos de terem emitido passaportes diplomáticos a familiares de suspeitos e
a contratação de parentes dos acusados em seus gabinetes. É inaceitável pairarem
dúvidas desta magnitude em relação a quem ocupa a Presidência da
República. E é grave a intenção manifestada pelo ministro da Justiça de federalizar
as investigações.
Não vamos medir esforços para cobrar das autoridades que as
investigações cheguem ao mandante político do assassinato de uma de nossas
protagonistas mais generosas, que dedicou a vida à luta por igualdade e justiça
para todas e todos.
Reafirmamos a necessidade de uma investigação isenta, sem
manipulação de provas ou manobras midiáticas, comprometida em responder a
pergunta que fazemos há 600 dias: quem mandou matar Marielle?
Anielle Franco
Jornalista, professora, mestranda em relações étnico-raciais
e autora do livro 'Cartas para Marielle' (ed. Conexão 7); é irmã de Marielle
Franco e diretora do instituto que leva o nome da vereadora, assassinada em
2018
Bianca Santana
Jornalista, pesquisa a memória e a escrita de mulheres
negras; é autora de “Quando me Descobri Negra” (ed. Sesi-SP)
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