O Brasil apresenta trajetória institucional singular, no
contexto das Américas, não apenas por ter sido colonizado pela coroa
portuguesa. Uma série de razões também levou o sistema republicano a se
implantar tardiamente por aqui.
A inauguração do regime só ocorreu no fim do século 19, mais
de cem anos depois de os Estados Unidos terem aberto esse caminho —seguido como
regra pelas nações americanas conforme vieram se tornando independentes.
Há 130 anos a revolta liderada por um marechal simpático à
monarquia culminou na aniquilação do Império e na proclamação da República. O
golpe pretoriano foi sucedido por uma ditadura comandada pelo próprio Deodoro
da Fonseca.
O presidente voltaria a usurpar o poder em 1891, quando
fechou o Congresso, mas em seguida sucumbiria ao contragolpe consumado pelo
vice, Floriano Peixoto, oficial apoiado por fração musculosa da caserna e da
oligarquia nacional.
O movimento nascido para combater o elemento absolutista
encarnado no imperador floresceu em contradições assim que arrebatou o Estado.
O espectro do caudilhismo, da tutela militar e do parasitismo oligárquico
assombrou a República no seu primeiro século.
Também o germe da exclusão social se hospedou naquele
organismo heterogêneo. O Partido Republicano Paulista mal disfarçava a ligação
com o interesse escravocrata. Para a sigla, de 1873, acorreram senhores
frustrados com a retomada da marcha abolicionista.
Seria cair em reducionismo, no entanto, deixar de contemplar
os aspectos virtuosos da rede de incoerências que constituiu a caminhada
republicana no Brasil.
De embates como os de Rui Barbosa contra investidas
arbitrárias do poder público, já nos primeiros anos do novo regime, emergiu a
chamada doutrina brasileira do habeas corpus, patrimônio do Estado de Direito
até hoje cultivado no Supremo Tribunal Federal.
A resistência de republicanos e abolicionistas precoces,
como Luiz Gama, à estupidez dos plutocratas que comandavam o seu partido
legou-nos o inconformismo com a discriminação pela cor da pele e com o abandono
da maioria da população à pobreza e à ignorância.
“O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade
—tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país. Privilégio de
religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição,
isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da
sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou a de
alguns sobre muitos.”
Em trechos como este, o Manifesto Republicano (1870)
exprimiu o sentido primordial do regime que pretendia implantar. Pelo contraste
com o império das desigualdades artificiosas, propugnava por um sistema em que
a isonomia passasse a prevalecer de fato.
Nada mais atual, decerto. Sem embargo dos avanços
substanciais conquistados sob a Constituição democrática de 1988, ninguém há de
negar que o programa consignado pelos primeiros republicanos está longe de ser
completado.
Todos são iguais diante da lei, mas o acesso à Justiça é
mais largo para os ricos. O fato de criminosos do colarinho branco começarem a
sair detrás das grades após um lapso de esperança na luta contra a corrupção é
uma mensagem não republicana das autoridades.
Todos são iguais diante da lei, mas a má qualidade do ensino
público conduz a maioria das crianças ao mesmo labirinto de baixa renda e
imobilismo social que aprisiona seus pais, prolongando a chaga da desigualdade.
O gasto do governo com a elite universitária é desproporcionalmente elevado.
Inépcia e patrimonialismo mantêm metade da população sem coleta de esgoto.
Todos são iguais diante da lei, mas pretos e pardos ainda
ganham menos e morrem mais de causas evitáveis que os brancos. Há muito mais
homens que mulheres nos cargos de maior destaque das empresas e na
representação política.
A lei a todos iguala, mas algumas categorias profissionais
desfrutam de regimes especiais de trabalho. O vencimento de um servidor público
é quase o dobro do de um assalariado da iniciativa privada com características
equiparáveis.
A lei fundamental não discrimina, mas um novelo de
regramentos e ações discricionárias dos agentes estatais torna a atividade
empresarial de uns mais favorecida que a de outros. Em vez de dedicar energia a
aumentar sua produtividade, grandes empresas se especializaram nos lobbies para
arrancar vantagens da burocracia.
A igualdade de tratamento é a regra, mas alguns procuram
impor sua moral e sua visão de mundo ao conjunto da sociedade. A liberdade do
cidadão de conduzir como quiser a vida privada e de se expressar nem sempre
encontra a devida proteção daqueles que deveriam zelar pelos direitos fundamentais.
Todos se submetem à lei, mas o presidente da República se
vale do que deveria ser o poder impessoal do Estado para resolver suas querelas
políticas. Discrimina, ameaça e edita normas para perseguir adversários.
Presenteia amigos.
É dia de comemorar os 130 anos da República sem perder de
vista que, apesar dos avanços, “a monstruosa superioridade de alguns sobre
muitos” se mantém à espreita.
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