Quase não paro no Rio. É o tempo de matar saudade da
família, refazer as malas, obter da emissora o sinal verde para um novo projeto
e cair na estrada.
Isso aumenta minha preocupação com a cidade. No fim de
semana, assisti ao filme “Coringa”. Parecia ter chegado a Gotham City. O filme
começa com a notícia da greve dos lixeiros, a sujeira se acumulando e Gotham
sendo tomada por uma grande quantidade de ratos.
No Rio, a notícia era o medo com a contaminação da água, as
autoridades pedindo desculpas, especialistas dizendo que não há previsão de
normalidade e a água mineral sumindo do mercado.
Em Gotham City, a polícia baixava o pau na multidão
fantasiada de palhaço que se indignou com as autoridades e protestava contra os
ricos. No Rio, cassetetes, gás lacrimogênio contra uma multidão fantasiada que,
ao que parece, queria apenas extravasar sua alegria.
Não é a primeira vez que o Rio se parece com as metrópoles
distópicas do cinema. Tive sensação semelhante ao ver “Blade Runner”, que era
uma investigação sobre o futuro.
A diferença é que no filme sobre cidades do futuro, a
natureza já não tem nenhum papel. Gotham City trata do lixo produzido pelo
consumo, as luzes são artificiais, assim como os reflexos que pontuam a
narração dramática.
É impossível dissociar a natureza do Rio, mesmo na sua
decadência. Talvez seja por isso que, no meio da década de 50 do século
passado, Rubem Braga escreveu sua célebre crônica “Ai de ti, Copacabana”.
Nela, muito antes de se falar da elevação do nível dos
oceanos, Copacabana é tomada pelo mar. Robalos e garoupas sobem nos elevadores,
siris comem cabeças de homens no prato, peixes escuros nadam na maré fétida.
Naquele texto memorável, Copacabana era punida pelos seus
pecados. Hoje, os pecados talvez tenham se transformado. Os rapazes maliciosos
do passado andavam de lambreta, hoje um veículo de avôs e tios mais velhos. As
moças passavam óleo no corpo, hoje Deus sabe o que tragam os corpos juvenis.
A distopia do saudoso Rubem Braga, no entanto, não está tão
distante da realidade. O aquecimento global eleva o nível dos mares, dizem os
cientistas, diante do ceticismo de alguns. E os pecados estão sob controle do
novo prefeito, que é um pastor evangélico.
A cidade se decompõe sob orientação divina. Muitos se
salvarão após a morte, uma tendência do Rio que se estendeu ao Brasil com a
eleição de um presidente terrivelmente evangélico.
É nosso o reino dos céus, mas aqui embaixo as grandes
distopias terão de ser pensadas com as forças naturais, a elevação dos mares,
os incêndios nas florestas, os rios envenenados pelas barragens de minério, as
pessoas fazendo a guerra pela água que restou.
A luz artificial de Gotham City oferece grandes recursos
para narrar o drama da decadência. No Rio, será preciso pesquisar muito a luz
natural para encontrar o tom exato e descrever o apocalipse.
Não é como alguns filmes de época que tratam da decadência
com elegância. Será preciso seguir a trilha do velho Braga: peixes, pássaros,
árvores e flores boiando na desordem geral.
Claro que esses filmes não descrevem o fim de tudo. Apenas
alertam para ele, estimulam as pessoas a evitar, ou no mínimo retardar, o
processo de dissolução.
Metrópole cultural, o Rio não é apenas natureza. Existem
nele forças que podem erguê-lo de novo.
Que me desculpem os moralistas de ontem e de hoje, mas não
foram os pecados que levaram o Rio à beira do colapso. Foram escolhas
econômicas e políticas. A cidade prosperou como um oásis liberal para os de
dentro ou fora do país.
O óleo na pele das meninas da praia serve apenas para
acentuar o bronzeado. O óleo embaixo da terra ou no fundo mar pode nos viciar e
inibir alternativas estratégicas.
Quando chove em Ipanema, atualmente, as ruas ficam tomadas
por esgoto e lixo. Não creio que seja um castigo divino porque homens ou
mulheres andam de mãos dadas na Farme de Amoedo. O grande pecado abaixo do
Equador é a incompetência.
Às vezes, dá vontade de rir como o Coringa ou chorar como
uma criança diante da própria fragilidade. Mas isso tudo é cinema. Na vida
real, temos saídas.
Artigo publicado no jornal O Globo em 20/01/2020
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