O episódio Roberto Alvim me colheu num lugar distante dos
grandes centros, em áreas sem conexão. Alegrou-me a ampla rejeição interna e
externa ao seu discurso. Mas, infelizmente, Alvim não me surpreendeu.
Ele já havia apontado em artigos sua política, raiz dessa
aberração, sustentando que o governo via a cultura como uma plataforma para a
defesa de suas ideias. Basicamente, ele nega a autonomia da arte e a vê ora
como sua aliada, ora aliada do PT. Portanto, é reduzida a propaganda
partidária. E qualquer força política que tente transformar a arte em departamento
de propaganda acaba fazendo dela uma divisão de seu exército. Como tinha
escrito isso antes, não me surpreendeu que Alvim, com tantos outros nazistas
para escolher, se tenha fixado em Goebbels. Era o ministro da Propaganda.
Ao repetir um discurso nazista, Roberto Alvim subitamente
buscou um elo para as peças da engrenagem que estavam soltas. Guerra cultural,
bombardeio de arte conservadora. É um todo coerente, A arte tem de ser
nacional, diz ele. Num mundo cada vez mais interligado, o que significa isso?
No passado já discutimos bobagens sobre a bossa nova. Diziam
que não era genuinamente brasileira, tinha influência do jazz. E o rock
brasileiro conheceu a oposição contra a guitarra elétrica. Um dos filmes
brasileiros mais analisados no exterior é Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues,
sobre o País mudando de cara, diferente da idealização das elites. Temo que um
filme como esse fosse combatido pelos que defendem a ideia de que a arte seja
nacional, por fugir a seus padrões. Na visão autoritária, o que não é nacional
é cosmopolita, alvo de duas forças, o nazismo e o stalinismo.
Essa história de que a arte deve ser heroica é um passo para
condenar os dramas do indivíduo, suas hesitações e seus fracassos, e
catalogá-los como arte decadente, seja na literatura ou na pintura abstrata.
Alvim não disse apenas algo escandaloso. Foi coerente e seguiu os passos
lógicos da orientação geral: guerrear na cultura, formular um programa que
produza heróis e patriotas. É como se sentiam muitos alemães sob o governo de Hitler.
Como há ainda tantas peças soltas que se podem ligar e
produzir uma faísca como o discurso de Alvim, é fundamental contar com a
resposta nacional e do exterior. Para mim, é a garantia de que em termos
estratégicos esses tresloucados não vão prevalecer. Isso não significa que não
possam causar grande mal, antes de sua derrota. Daí a necessidade de pensar
cada vez mais numa frente democrática, superar pequenas diferenças,
ressentimentos, admitir que estamos em perigo e não bastam reações pontuais.
Um dos pontos que precisam de impulso comum é o
reconhecimento da autonomia da arte, que não pode ser reduzida a propaganda
partidária. Aparentemente é uma tese simples. Mas na prática ainda há
expectativa sobre uma arte engajada, participante e transformadora. Belas
palavras, mas o que significam realmente?
Dois autores que nos anos 1960 eram considerados alienados
são os que sobreviveram com mais força: Clarice Lispector e Guimarães Rosa. No
caso de Clarice, foi patética a resistência ao intimismo, à descrição subjetiva
do mundo – tudo isso a jogava fora da história. E o curioso é que Clarice, numa
grande manifestação contra a ditadura, estava lá de mãos dadas com outros
artistas, no Rio.
Não que as pessoas não devam ter uma ideia de como deva ser
a arte, nem que os artistas tenham de se encerrar numa torre de marfim. O diabo
é querer transformar sua visão de arte numa política de governo, numa
expectativa de definir seus rumos, marcar seus limites ou até transfigurá-la
numa linha auxiliar de partido.
Os artistas sofreram muito sob o comunismo. Visitei o museu
de Anna Akhmatova, em São Petersburgo, depois de ler uma história da cultura
russa. O que ela sofreu sob o stalinismo, filho preso, bloqueio de trabalho,
parece além da capacidade humana. O nazismo mandava para campos de
concentração, executava, bania obras.
O princípio que os une é o mesmo: ter uma causa superior a
tudo, à qual todos, principalmente os artistas, devem ser unir, sob pena de se
tornarem inimigos do país que os fanáticos julgam encarnar. Isso explica como
eles associam o rock and roll ao satanismo, ao aborto, dizem que Theodor Adorno
escrevia as músicas dos Beatles e insultam, como Alvim, uma artista como
Fernanda Montenegro. Eles estão em guerra contra o diferente, o que no fundo é
contra a liberdade do artista e do indivíduo.
Creio haver uma predominância da visão de esquerda na
cultura brasileira. Mas ela jamais será superada na truculência. Esta é a forma
de confirmar a supremacia da esquerda: admissão de que só pode ser superada por
caminhos autoritários. A única forma com possibilidade de equilibrar o jogo é o
embate de ideias na cultura e a aparição de talentos nas artes.
É irreal esperar uma arte conservadora a partir do governo,
ou uma arte revolucionária a partir de partidos de esquerda. Há um campo de
direita mais sofisticado. Seu avanço no universo cultural pode até ser
invalidado por essa visão bélica do governo. É como se Bolsonaro repetisse
velha frase, de origem alemã: quando ouço falar em cultura, saco minha pistola.
Para desfazer, com o mínimo de traumas, essa teia perigosa
será preciso muita habilidade coletiva. Uma frente, em certos momentos
históricos, pode cumprir esse papel.
Artigo publicado no Estadão em 24/01/2020
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