A divulgação na quinta-feira 23 de que o Brasil chegou a sua
mais baixa colocação na série histórica do Índice de Percepção da Corrupção,
medido pela Transparência Internacional (TI), confirmou o que especialistas no
combate ao crime de colarinho branco comentaram sobre o que foi 2019. No
diagnóstico traçado pela organização, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário
colaboraram para o resultado — agora, o Brasil está na 106ª posição do ranking
—, mas nenhum dos Três Poderes contribuiu tanto quanto Jair Bolsonaro.
Eleito com um forte discurso anticorrupção, o presidente
atuou contra pilares do sistema de combate à corrupção, alguns que, de 2014
para cá, permitiram a inédita prisão de ases do poder político e econômico. Ao
ver a polícia e o Ministério Público baterem à porta de Flávio Bolsonaro, o
presidente mudou sua convicção — talvez porque não fosse tão consolidada como
ele dizia ser — e deu uma guinada de 180 graus. Atropelou algumas instituições,
interferiu em outras, falou abertamente em usar a lei de abuso de autoridade
contra quem investigava seu filho, e, ao fim do ano, sancionou a figura do juiz
de garantias, um trecho do pacote anticrime que, embora assegure a
independência do juízo de um caso, inevitavelmente aumentará a morosidade da
Justiça.
O crescente afastamento da agenda bolsonarista da agenda de
combate à corrupção, entretanto, pode lhe criar um grande problema para 2022.
Se o eleitor de Bolsonaro não o identificar mais com essa pauta, em quem votará
o sujeito que foi no 17 em 2018 mas pouco se importa com o fantasma da ameaça
comunista, a ditadura gayzista ou a esfericidade da Terra?
Para muita gente, a resposta a essa pergunta atende pelo
nome de Sergio Moro.
Moro ainda diz que não vai ser candidato a nenhum cargo em
2022. Mas as movimentações por ele não param. O Aliança pelo Brasil, tão logo
seja constituído, espera filiá-lo, com o objetivo de que ele seja candidato a
vice de Bolsonaro em 2022. Um lance bem mais ousado seria o que o Podemos, do
senador Alvaro Dias, paranaense como Moro, vem tentando. O partido está de
portas abertas para o ministro da Justiça disputar a Presidência da República
contra Bolsonaro em 2022. Dias já tratou do assunto mais de uma vez com Moro,
na tentativa de mostrar ao ministro da Justiça que ele tem mais estatura
política que Bolsonaro. Até agora, o ministro tem feito a egípcia. Não diz se
toparia uma filiação, seja no Aliança, seja no Podemos, mas também não fecha
nenhuma porta.
O entorno de Moro, entretanto, comunga cada vez mais da
percepção de que as agendas do ministro e de Bolsonaro são incompatíveis.
Os prejuízos causados pela atuação do Palácio do Planalto
ocupam três páginas do documento. As suspeitas de corrupção envolvendo Flávio
Bolsonaro, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o líder do governo
no Senado, Fernando Bezerra, são citadas como exemplos que constrangeram o
primeiro ano de Bolsonaro, mas uma radiografia mostrou todas as investidas. “Os
primeiros dez meses de seu governo não mostraram nenhum progresso na
implementação de uma agenda anticorrupção. Pelo contrário, uma série de
decisões do Executivo mostrou sinais de interferência política em órgãos-chaves
da luta contra a corrupção, como a Polícia Federal, a Receita Federal e a
Procuradoria-Geral da República”, escreveu a Transparência.
“A interferência política na Polícia Federal cresceu. Os
superintendentes ameaçaram fazer uma renúncia em massa, na sequência da
substituição de Ricardo Saadi, o chefe da Superintendência Regional do Rio de
Janeiro”, criticaram os especialistas da organização, referindo-se ao levante
na PF contra a tentativa de Bolsonaro de domar a corporação. Não foi a única.
Até a cabeça do diretor-geral da polícia esteve a prêmio. E Moro precisou
ameaçar se demitir para salvá-lo.
As investidas contra a Receita Federal também constam da
análise da TI. As demissões de Marcos Cintra e de João Paulo Martins da Silva,
o secretário da Receita e seu vice, além de Ricardo Pereira Feitosa, chefe da
Inteligência Fiscal da Receita, foram registradas: “Bolsonaro expressou
publicamente seu descontentamento, acusando a Receita de mirar negócios de sua
família com escrutínio excessivo. Até uma multa imposta a uma pequena
irregularidade fiscal cometida por seu irmão foi colocada como justificativa
para as mudanças”.
A demissão de Roberto Leonel do comando do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e, depois, a abertura da
possibilidade de nomear comissionados na nova Unidade de Inteligência Financeira
(UIF) também foram citadas pela Transparência — lembrando a contribuição de
Dias Toffoli, cuja liminar paralisou durante meses o Coaf e centenas de casos
de combate ao crime organizado.
O quarto ponto registrado pela TI foi o esvaziamento do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade). “A interferência política ficou
evidente quando Bolsonaro retirou indicações de dois novos conselheiros
selecionados tecnicamente pelos ministros da Justiça e da Economia e indicou
outros candidatos, nomes negociados com senadores como barganha por votos para
que seu filho Eduardo Bolsonaro tivesse apoio para se tornar embaixador nos
Estados Unidos”, analisou a Transparência.
Em praticamente todos esses momentos, Moro e Bolsonaro se
chocaram. Quase nunca em público — exceto uma vez, em agosto, quando Bolsonaro
disse que, em seu governo, mandava ele.
O ano de 2020 vai testar os limites do ex-juiz. Um bom
termômetro disso será novembro, quando Bolsonaro terá de indicar alguém para o
Supremo Tribunal Federal, para a vaga que será aberta com a aposentadoria de
Celso de Mello. Se o presidente não indicar Moro, ele deveria ao menos
conversar com seu ministro, explicar por que não o escolheu, ou consultá-lo
sobre os nomes, como geralmente o presidente faz com o titular da Justiça.
Indicar outro e ignorá-lo completamente poderá consolidar em Moro a impressão
de que, para Bolsonaro, ele é só um boneco de posto de gasolina. Daqueles que o
gerente só tira do armário quando precisa atrair clientes.
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