Desde a campanha eleitoral de 2018, eu me pergunto qual é o
sentido possível da divisa “Brasil acima de tudo, Deus
acima de todos”.
“Deus acima de todos” só se entende se for completado assim:
“...acima de todos os que acreditam nele”. Para os que não acreditam em Deus,
Ele (ou Ela, se for mulher) não está acima de coisa alguma. Para os que
acreditam num deus que não é o nosso, o deus acima de todos seria o deles, e,
às vezes, os dois deuses pensam diferente.
O maior problema é que, mesmo que acreditemos todos no mesmo
deus, nosso entendimento do que ele quer da gente é variado. A história nos
presenteou com séculos de guerras pavorosas entre crentes do mesmo deus, cada
um convencido de que o tal deus estava combatendo com ele. De fato, no caso, só
Deus sabia de que lado estava (eu tendo a pensar que ele estivesse de folga).
Resumindo, para os crentes, a divisa é boa só sob a condição
de que o governo que a adota acredita exatamente no mesmo deus deles. Para os
não crentes, a divisa é ameaçadora, pois eles prefeririam que a autoridade
do Estado fosse fundada na razão e na lei —não num deus que eles não
reconhecem.
Mas vamos em frente. “Brasil acima de tudo” é mais estranho
ainda. É uma retomada do primeiro verso do “Deutschlandlied”: “Deutschland
über Alles”, Alemanha acima de tudo. As letras foram escritas em 1841, para
lembrar que a urgência era a unificação da Alemanha (que era na época uma
federação comercial de 35 monarquias e quatro cidades-Estado).
A primeira estrofe do canto se tornou o hino do nazismo,
pois Hitler queria mesmo reunir todos os “alemães”, quer eles fossem austríacos
ou vivessem como minorias, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Alsácia etc. (foi
com esse pretexto que ele começou a invasão da Europa). Enfim, a estrofe é
hoje proibida na Alemanha, pois se verificou que pôr a nação “acima de tudo”
acaba autorizando qualquer turpitude.
Então, qual sentido tem para nós a divisa “Brasil acima de
tudo”? Duvido que alguém queira invadir o Paraguai porque há 300 mil
brasileiros por lá.
Já me explicaram que “Brasil
acima de tudo” é um brado dos paraquedistas, inventado no fim dos anos 1960
e adotado oficialmente nos 1980. Tudo bem, mas pergunto: os paraquedistas
se inspiraram no quê e em quem? Não foi no começo do hino nazista?
A referência explícita ao nazismo voltou intencionalmente
na patacoada
do ex-secretário especial da Cultura. Paradoxal e comicamente, na hora de
anunciar uma nova cultura “nacional”, ele escolheu a trilha sonora preferida de
Hitler (Wagner), em vez de, sei lá, Carlos Gomes ou Villa-Lobos.
Mas façamos de conta que “Brasil acima de tudo” seja apenas
a expressão de um nacionalismo genérico. Faz sentido?
Só à condição de completar imediatamente: Brasil acima de
tudo, “contanto que ele tenha razão”.
“Brasil acima de tudo”, aliás, lembra-me o livro de um
fascista italiano que reuniu seus escritos dos anos 1930 sob o título:
“L’Italia Ha Sempre Ragione”, a Itália tem sempre razão —frase bizarra
hoje, e, na época, hilária.
Quando nasceu a paixão nacionalista, no século 19, havia
mentecaptos para afirmar que a nação tinha alma eterna e infalível, mas,
infelizmente, a nação só existe e se manifesta na história através de governos
e povos concretos. E os governos e os povos são feitos de almas mortais
—às vezes, tolas, outras vezes, sanguinárias.
Você perguntará: mas quem decide se o Brasil tem razão? Quem
diz quando o Brasil está certo ou não?
Pois é, a resposta não está em nenhum livro de educação
cívica. Quem decide é você, só você. Se errar, pelo menos será um erro
seu, responsabilidade sua.
Em cada cidadão, a vontade e a capacidade de pensar e julgar
está acima da nação. É difícil? Sim, mas durma com isso.
Se seu país amanhã decidir expulsar os judeus, como a
Espanha em 1492, você dirá o quê? “Arriba, Espanha”? E se ele decidir prender
os homossexuais, como Cuba desde os anos 1960, você dirá o quê?
“Viva la revolución”? E se seu país torturar e matar os
dissidentes às escondidas, como a ditadura militar brasileira, você vai
dizer o quê? “Brasil acima de tudo”?
O brado nacionalista, em todas as épocas e em todos os
lugares, não é diferente dos outros convites a aderir a uma coletividade, que
seja o partido, a torcida, a Igreja ou a gangue: ele só serve como uma boa
desculpa para não pensar com a cabeça que nos foi dada —por Deus ou por Darwin.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas),
'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem
(Papirus)
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