Ou cairá mais adiante ou se fortalecerá como aspirante a
ditador
Esta semana marcou uma virada sem retorno na trajetória do
presidente da República. De problema político, a provocar conflitos e a desatar
crises entre os Poderes na esperança de destruir a democracia e instalar uma
ditadura no seu lugar, Jair Messias Bolsonaro passou também à condição de um
grave problema sanitário que ameaça à saúde dos brasileiros.
Os próximos serão dias dilacerantes com a elevação dos casos
confirmados de coronavírus e do número de mortos. E os dias mais trágicos ainda
não terão chegado. Calculam técnicos do Ministério da Saúde que o pico da
primeira onda da pandemia só se dará daqui a quatro semanas, coincidindo com o
pico de mais duas epidemias: influenza e dengue. Tempestade perfeita.
Os Estados Unidos são o novo epicentro do coronavírus no
planeta, ultrapassando em número de infectados a China, a Itália e a Espanha.
Em Nova Iorque, nas últimas 24 horas completadas ontem à noite, morreram mais
de mil pessoas. Há pelo menos meio milhão de infectados nos os países que costumam
remeter seus dados oficiais à Organização Mundial da Saúde.
Jamais se saberá com exatidão quantos de fato foram
contaminados e quantos perderam a vida. É assim nas pestes. Aqui, cientistas
desconfiam que os números estejam sendo achatados, ou por deficiência dos
sistemas de registro, ou por falta maior de conhecimento da doença, ou por
razões ocultas que ainda não foram decifradas, mas que poderão vir a ser um
dia.
Depois de estimular seus governados a circularem e se
divertirem sem remorsos, o presidente populista de esquerda do México, uma
espécie de Bolsonaro de lá, recuou assombrado e decretou a quarentena
obrigatória. Menos mal, mas tarde. O prefeito de Milão admitiu que errou ao
patrocinar uma campanha publicitária onde garantiu que sua cidade não se
fecharia. Fechou-se.
Justamente agora, a Secretaria de Comunicação da presidência
da República do Brasil, a mando dos filhos de Bolsonaro e com o seu aval, está
prestes a lançar a campanha “O Brasil não pode parar”. Sentindo-se autorizados
pelo presidente eleito com o voto de apenas 39% dos brasileiros, devotos do
Mito marcam carreatas em apoio ao fim da quarentena bancada pelos governadores.
Em contraste, na França, onde o coronavírus matou 365
pessoas nas últimas 24 horas, o presidente Emmanuel Macron prorrogou o período
de confinamento. O presidente Donald Trump, que havia dito que o confinamento
no seu país só iria até a Páscoa, engoliu o que disse. Fez um acordo com o
Congresso e gastará o equivalente a 6% do PIB para socorrer quem precisa.
Como perdeu o bonde da História por ignorância ou escolha
pensada e repensada, Bolsonaro faz o contrário. Atrasa a liberação de recursos
para os Estados, o anúncio de medidas para que não se esvaziem rapidamente os
bolsos dos que vivem na economia informal, e sabota as providências tomadas em
sentido contrário por seus próprios auxiliares, além de detratá-los.
Por toda parte, a azeitada máquina bolsonarista de
distribuição de notícias faltas e de produção de eventos se move para acirrar
os ânimos e dividir o país, jogando uma parte dele contra a outra. Não importa
que a grande maioria dos brasileiros diga apoiar a quarentena. Quem sabe a
maioria não se desmanchará quando souber que a quarentena não acabará tão cedo?
Além da tempestade, teríamos então o crime perfeito:
deixa-se que os velhos morram (menor pressão sobre a Previdência). E os mais
pobres (menor pressão sobre outros gastos). Devolvem-se os jovens ao trabalho.
Com salários reprimidos, naturalmente. Salvam-se os que por sorte se salvaram
ou por dispor de renda que pagou melhor atendimento. Seleção das espécies.
Do desprezo de Bolsonaro pela vida alheia, do seu absoluto
despreparo para exercer a função que exerce, o país teve mais uma vergonhosa
amostra quando ele afirmou ao rebater a suspeita de que a pandemia causará
grande estrago: “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê
o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com
ele.”
A Agência Brasileira de Inteligência, órgão do governo,
preveniu a tempo Bolsonaro para o que estava por vir – ele não ligou ou não
quis ligar ou começou a pensar sobre a vantagem que poderia retirar disso. A
agência opera com vários cenários – o pior, de colapso total e rápido do
sistema de saúde, da fome que possa matar os desassistidos, de saques e de
convulsão social.
É tudo o que almejam Bolsonaro e os que compartilham dos
mesmos propósitos. Esperam que em nome do restabelecimento da ordem possam,
enfim, apelar para os militares. Dificilmente o Congresso aprovaria a
decretação do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio. Mas Bolsonaro e sua malta
já se contentariam com sucessivas e localizadas operações de Garantia da Lei e
da Ordem.
Realizadas por ordem expressa da Presidência da República,
as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o
esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações
de perturbação da ordem. O Exército é despachado para lugares que exijam sua
presença por tempo determinado. Para os Bolsonaro já estaria de bom tamanho.
Em meio a uma epidemia do tamanho desta, que obriga o
Congresso e a Justiça a funcionarem virtualmente, não se remove um presidente
do cargo via processo de impeachment que é demorado. Os ex-presidentes Fernando
Collor e Dilma Rousseff só caíram quando o povo foi para as ruas. Nem se
quisesse, o povo agora iria. Panelaço faz barulho, mas não derruba presidente.
O que fazer com Bolsonaro que nem sob a pressão da farda
renunciará? No passado, ele afrontou a farda ao planejar jogar bombas em
quartéis. Afrontou ao cobrar o título de capitão em troca do seu afastamento do
Exército por indisciplina e conduta antiética. Os generais fizeram cara feia,
mas aceitaram a oferta. Resultado: hoje, batem continência para ele.
O desejo de Bolsonaro de ser promovido a ditador não será
satisfeito pelas Forças Armadas. Não se conte, porém, com sua ajuda para que
Bolsonaro peça o boné e vá para casa. Caberá aos civis de todas as cores que
abominam as trevas desatarem esse nó.
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