quarta-feira, 18 de março de 2020

COM MORTE NÃO SE LACRA

Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
Domingo, 13h. Um sorridente Jair Bolsonaro, trajando camisa polo da Confederação Brasileira de Futebol, desce a rampa do Palácio do Planalto, geralmente destinada a solenidades, para cumprimentar mais de 200 pessoas, posar para selfies ao lado de cartazes pregando o fechamento do Congresso e com palavrões e subir de volta aos urros de “AI-5, AI-5”.
Naquela ocasião, o Brasil já iniciara uma quarentena ainda meio desajeitada, mas engajada nas orientações do Ministério da Saúde para tentar achatar a curva de propagação do novo coronavírus no Brasil. Bolsonaro, por sua vez, tinha um segundo teste de Covid-19 pendente, e deveria estar em isolamento.
Terça-feira, 18h. Um Bolsonaro bem menos acelerado, com cara assustada e acuada, para na grade do Palácio da Alvorada para uma conversa com a imprensa. Não xinga ninguém. Não diz que a pandemia de coronavírus é histeria – nem sua variante “histerismo” – ou fantasia. Não ofende Rodrigo Maia nem Davi Alcolumbre. Pelo contrário: os convida para uma reunião, juntamente com outros representantes de Poderes.
O que mudou nas 50 e poucas horas entre os dois atos? Pelo menos duas pessoas morreram pelo novo coronavírus, as primeiras vítimas brasileiras de uma pandemia que já vitimou mais de 7.000 pessoas pelo mundo. E as instituições traçaram uma risca no chão diante dos arreganhos autoritários do presidente da República.
Não se sabe se por motor próprio ou se instado pelos militares, mas Bolsonaro saiu do looping em que estava desde o início do ano e fez um leve recuo. Pode não durar e ele pode entrar em autocombustão, como já ocorreu em outras vezes e é de sua natureza.
A diferença, dramática para ele, é que desta vez houve perda importante do pouco de massa crítica que ainda restava no bolsonarismo, que se comporta cada vez mais como uma seita golpista. Janaina Paschoal, deputada mais votada da História do País, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, que recusou a vaga de vice na chapa de Bolsonaro, fez um discurso contundente dizendo que ele deveria deixar o cargo por colocar a saúde pública em risco.
O governador Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, um dos poucos a dar a cara a tapa e defender o governo federal, foi às ruas escorraçar manifestantes em Goiânia, com um duro discurso no qual disse que antes de governador é médico. O contraste com a fanfarronice presidencial foi cristalino até para os fanáticos das redes sociais, e em linguagem testosterônica, que eles conseguem entender.
A erosão do apoio a Bolsonaro, que vinha num crescente em razão da cobiça do Legislativo sobre o Orçamento, foi detectada pela medição de redes sociais do Planalto – o único indicador com o qual o presidente da República parece se importar de fato. E a palavra impeachment deixou de ser proibida e passou a frequentar o discurso de parlamentares, analistas políticos e juristas. Bolsonaro ajuda: vai deixando digitais de crimes de responsabilidade ainda mais evidentes que os perdigotos que lança em tempos de recomendação de distanciamento social.
É claro que iniciar uma batalha pelo impeachment em meio a uma pandemia é uma irresponsabilidade. Não serei eu a defender este caminho, nem existe propensão real do Congresso a avançar por aí. Mas, ao excluírem o presidente da República da mesa de discussão de saídas para a pandemia, os demais líderes do País mandaram um recado a ele: se quisermos, podemos isolá-lo.
Bolsonaro entendeu. A cara de pânico com que anunciou a reunião horas depois de dizer, infantilmente, que faria uma festinha de aniversário deixou claro que, até para alguém com uma noção tão rudimentar do próprio papel no momento mais dramático da História do País neste século, o medo é um sábio conselheiro.
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