quarta-feira, 18 de março de 2020

JAMAIS DIGA “ISSO NÃO VAI ACONTECER”

Cristiano Romero, Valor Econômico
No jornalismo, os mais experientes recomendam aos mais jovens que jamais pronunciem a frase “não vai acontecer nada”. Dita por jornalistas, essa sentença é uma espécie de maldição. Tudo acontece quando um repórter, encarregado de cobrir um determinado assunto, ousa duvidar do destino, este trapaceiro.
A crise mundial de 2008, cujo epicentro foram os Estados Unidos, vinha sendo antecipada por alguns poucos economistas havia alguns anos, mas as autoridades americanas fizeram ouvido de mouco. Não era necessário ser um especialista para desconfiar de que havia algo muito errado no mercado imobiliário da maior economia do planeta – um problema que depois contaminou o sistema financeiro europeu e provocou a crise mais severa desde a Grande Depressão, em 1929.
Desde o início dos tempos, diziam americanos orgulhosos, os preços dos imóveis nos EUA só têm uma direção: subir. Isso foi um fato até 2008, mas o que acontecia no fim do século XX e nos primeiros anos do atual não podia ser normal.
Grosso modo, dava-se o seguinte: o sujeito ia a um banco e, sem muita dificuldade, conseguia crédito para comprar um imóvel, às vezes, mais de um. Na época, os bancos não se preocuparam muito com a capacidade do devedor de honrar a hipoteca. Por quê? Porque o valor dos imóveis escalava a um ritmo extraordinário. A depender do local, o preço dobrava no espaço de apenas quatro anos.
Consumidores ávidos, os americanos também tiravam proveito da “pirâmide” da seguinte forma: como os preços dos imóveis não paravam de aumentar, o valor das hipotecas – dos financiamentos imobiliários que os cidadãos tomavam em instituições financeiras – se tornava ao longo do tempo proporcionalmente menor, quando comparado ao preço de mercado; isso permitia aos mutuários ir aos bancos e pedir a renegociação da dívida com base no preço mais alto do imóvel; como a dívida contratada era a mesma, o novo empréstimo, garantido pelo valor do bem cujo preço não parava de subir, assegurava que os “santos” devedores voltassem para casa com os bolsos cheios de dólares. E o que eles faziam com o dinheiro? Compravam carros maiores que os dos vizinhos, viajavam ao exterior, enfim, gastavam.
Ora, enquanto os preços dos imóveis continuassem subindo, estava tudo certo. Naturalmente, os preços permaneceriam em alta se a economia seguisse crescendo, com a taxa de desemprego estacionando perto do pleno emprego, mas sem pressionar a inflação. Ocorre que, desde a idade da pedra lascada, ciclos econômicos têm fim.
Os bancos americanos há muito têm uma maneira de passar adiante seus créditos imobiliários. Empacotam as hipotecas, atribuem-lhe uma classificação de risco e levam-nas a mercado. Trata-se de uma forma de fazer com que a roda do crédito continue funcionando. As hipotecas saem do balanço dos bancos e estes passam a ter condições de emprestar novamente. Isso é normal.
O que não é normal foi o que grandes e renomados bancos americanos começaram a fazer. Como o ciclo econômico começou a dar sinais de fadiga, trabalhadores logo passaram a perder seus empregos e, portanto, a capacidade de pagar dívidas. A qualidade das hipotecas (o “rating”) entrou em rota de queda porque os devedores não tinham mais como honrar o pagamento.
Os imóveis super valorizados não conseguiram salvar os devedores. Porque, lembram-se, eles aproveitaram a valorização de suas casas para renegociar a hipoteca e botar a mão num punhado de dólares, por meio de dívida nova. Agora, desempregados, tinham que pagar a hipoteca, a dívida nova, o cartão de crédito…
No período de bonança, a farra foi tão grande que as famílias americanas se endividaram de maneira jamais vista. Brasileiros, igualmente cobiçosos, mas sem instrumento (crédito farto e barato) para fazer isso, achavam muito estranho ver na casa de americanos utensílios domésticos e equipamentos eletrônicos chegados das lojas fazia tempo e jamais desembrulhados. Ninguém compra algo nos EUA por acreditar que o preço vá subir. Compra-se por prazer, porque, como diz Paulinho da Viola, “dinheiro na mão é vendaval”.
Em 2005, Raguran Rajan, então economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi ao convescote de Jackson Hole, promovido anualmente pelo Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, para uma troca de ideias com dirigentes de bancos centrais das maiores economias. Rajan, um economista discreto e sem o apelo marqueteiro de Nouriel Roubini, que diz ter sido o primeiro a prever o desastre da economia americana que levou o mundo à Grande Recessão, apresentou estudo que causou enorme frisson entre os convivas de Jackson Hole naquele ano.
Intitulado “O Desenvolvimento Financeiro Tornou o Mundo mais Arriscado?”, Rajan enxergou, antes de Roubini, que a sofisticação dos instrumentos financeiros desenvolvidos nas três décadas anteriores, motivada pela desregulamentação do sistema financeiro americano na década de 1990 e pelo avanço da tecnologia computacional, disseminou o risco financeiro por toda a economia. Ele fez um alerta aos presidentes de bancos centrais ali presentes.
Como sempre tem alguém no mundo que, sim, presta atenção a tudo, investidores, antevendo o desequilíbrio gigantesco que se criava no mercado imobiliário sem que o Fed fizesse nada para contê-lo, propuseram a bancos de investimento a criação de um novo instrumento financeiro. Este tinha três letras – CDS, sigla em inglês de Credit Default Swap – e foi para a prateleira. Quem quisesse apostar na quebra do sagrado mercado imobiliário americano passou a ter o CDS para fazer isso.
No início, investir nesse papel foi um mau negócio. Mas, quem perseverou venceu, ganhando muito dinheiro porque, em 15 de setembro de 2008, o centenário Lehman Brothers quebrou, acordando o Leviatã. Este destruiu trilhões de dólares em riqueza não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Para superar aquela crise, o Fed rasgou o livro-texto de Economia, salvou bancos, financiou governo e empresas do setor produtivo, enfim, jogou dinheiro do helicóptero. Ainda assim, os americanos amargaram cinco anos para reduzir a dívida e voltar a crescer.
A crise atual parece menor que a de 2008 porque não se origina de um problema econômico. Leviatã está à espreita porque um vírus chamado covid-19, de baixa letalidade, pôs a humanidade de joelhos.
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