O surgimento de um inimigo que vem na forma de um vírus,
impossível de se ver, nos desperta da ilusão de que podemos nos livrar dos
limites da fragilidade humana. De repente, um organismo microscópico nos interroga,
nos detém e nos obriga a resolver o enigma que é, em última análise, o da
condição humana.
A pandemia nos
mostra que a sociedade mais complexa e interdependente em que vivemos é frágil,
apesar das extraordinárias possibilidades originadas no progresso da ciência e da tecnologia. Os
mecanismos de gestão, especialmente em momentos de crise, mostram-se falhos,
assim como os líderes mundiais, perplexos frente à percepção de que tudo pode
fugir ao controle, em escala planetária.
O enigma com o qual nos deparamos e para o qual precisamos
de respostas exige, antes de tudo, o reconhecimento de que o mundo que
construímos sofre de males muito anteriores ao surto do coronavírus.
Males que agora são expostos e interferem na luta contra a doença: a desigualdade,
os desastres ambientais e as consequências de um caminho não sustentável de
desenvolvimento.
Do ponto de vista econômico,
depois de acreditarmos nas possibilidades positivas e infinitas da
globalização, somos obrigados a enfrentar limites impostos pela natureza para
além dos desastres ambientais, agora na forma de vírus, que pode nos levar a
uma depressão mundial.
E as consequências do surto atingem mais fortemente os
pobres e vulneráveis. Pois mesmo no mundo desenvolvido, uma parte significativa
da população está desprotegida, como mostram as condições de saúde pública de
países como Estados Unidos e Itália.
A maior economia do planeta, que gasta trilhões de dólares
em armas, não oferece à sua população um sistema de saúde universal. São 30
milhões de americanos sem seguro de saúde e 44 milhões com proteção limitada,
sem poder pagar os custos de planos privados.
Na Itália, país
europeu mais atingido pela epidemia, a saúde pública se mostra incipiente,
consequência dos sucessivos cortes de investimento na área. Os italianos notam
agora o valor inestimável de enfermeiros e médicos, que assumem o papel de
heróis, mas em geral são mal remunerados e trabalham em situação longe da
ideal.
Desta pandemia, como de outras, o mundo sairá. Mas será que
a registraremos como apenas mais um triste acidente ou ela nos trará força para
iniciarmos um caminho novo?
Para que se trilhe um novo caminho, será preciso surgir uma
nova consciência, a partir justamente da certeza da interdependência. É ela que
vai induzir a mudanças profundas de valores e à percepção de que o destino do
mundo depende de todos e requer, de cada um, uma drástica revisão de
prioridades, uma redefinição do que é realmente importante na vida.
As mudanças em nossas rotinas, pelo isolamento que o vírus
nos impõe, podem servir como um grande laboratório para novas possibilidades.
Ao sermos obrigados a parar, percebemos o absurdo de aspectos de nosso
cotidiano, um círculo vicioso de mais trabalho, mais dívidas, mais consumo e
menos tempo para o que é essencial.
A percepção por parte de empresas e dos profissionais de que
se pode trabalhar
de casa sem perda de eficiência, talvez facilite a evolução para
formas mais flexíveis de trabalho. Esta seria uma verdadeira revolução, podendo
melhorar a vida de milhões de pessoas, favorecer a economia e o meio ambiente.
Menos deslocamentos significam menos poluição, menos
trânsito, mais tempo para estar com a família, estruturas empresariais menores,
cidades mais humanas, possibilidades de mudanças não menos do que
revolucionárias.
Por outro lado, neste momento em que nos deparamos com
governos que desvalorizam a ciência e a pesquisa, fato que infelizmente ocorre
também em nosso país, outra lição que tiramos da crise é a de que as evidências
científicas são as únicas que podem orientar as ações para o combate a esta e a
outras doenças.
Os países que melhor conseguiram controlar a epidemia foram
os que mais prontamente seguiram orientações de profissionais e acadêmicos da
área médica sobre sua prevenção e cura, tais como Taiwan, Coreia do Sul e
Singapura. Sabemos ainda que o controle definitivo da doença virá apenas com a
descoberta de uma vacina, que será fruto do trabalho de pesquisadores do mundo
inteiro.
Mais do que tudo, podemos sair de nossas fragilidades
reencontrando um forte espírito de comunidade. Um repensar do que é essencial,
uma mudança de rumo em direção a estilos de vida e condições de desenvolvimento
mais humanos e sustentáveis.
Há exemplos históricos de como um mal que atinge a
humanidade desprevenida pode levar ao surgimento de um novo estado de coisas. A
epidemia da Peste
Negra devastou boa parte da população europeia no século 14. Seu
impacto resultou em mudanças profundas nas áreas social, econômica, cultural e
religiosa que, direta ou indiretamente, levaram ao surgimento do Renascimento.
Mais perto de nós está a reflexão que Camus deixou com seu
romance A Peste, obra que agora, por motivos óbvios, voltou a ser um
best-seller. A Peste passa-se nos anos 1940, em Oran, pequena cidade do norte
da África, “onde a vida é monótona e os habitantes vivem para o trabalho e para
o acúmulo de riquezas.” Metáfora do mal que na época era representado pelo
nazifascismo (aliás, mais atual do que nunca), é também uma alegoria moral que
reflete como a proximidade da morte pode resgatar a essência das relações
humanas, despertando sentimentos de solidariedade e empatia.
A pandemia nos lembra que, para conseguirmos superá-la, não
é suficiente praticarmos o “cada um por si e Deus por todos”, é premente
recuperarmos o sentido do nós.
*O autor reconhece e agradece a colaboração de Maria
Cristina Nascimento na construção deste texto, mantendo-se, no entanto,
responsável único pelo seu conteúdo
Helio Mattar
Diretor-presidente do Instituto Akatu, foi secretário de
Desenvolvimento da Produção do Ministério da Indústria e Comércio Exterior
(1999-2000).
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