terça-feira, 17 de março de 2020

TRAUMA DA GUERRA DO PARAGUAI

Rubens Ricupero, Folha de S.Paulo
Trauma da Guerra do Paraguai iniciou aversão brasileira a conflitos
No dia 1º de março, o Brasil completou 150 anos ininterruptos de paz com seus dez vizinhos. Nenhum outro país com tão vasta vizinhança ostenta essa tradição pacífica.
Em 1º de março de 1870, terminava, com a morte do ditador paraguaio Francisco Solano López, a Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Em Assunção, manifestações oficiais relembraram a efeméride; no Brasil, passou em brancas nuvens.
Repetiu-se o que ocorrera no centenário do fim do conflito (1970). Nos cinco anos anteriores à data, os jornais guaranis recordaram dia a dia o que acontecera um século antes. O Brasil guardou silêncio, fiel à lição do barão do Rio Branco de que há vitórias que não se devem comemorar.
Somente no aniversário do fim do conflito, o ministro do Exército emitiu nota exemplar, afirmando que o Brasil tinha preferido esperar para comemorar cem anos de paz a um século de guerra. Era, e é, a melhor maneira de celebrar a maior tragédia da história sul-americana.
Passado tanto tempo, a Guerra do Paraguai continua a suscitar acusações e dúvidas que merecem esforço de elucidação. A quem cabe, por exemplo, a culpa pelo conflito?
As hostilidades começaram em 11 de novembro de 1864, quando, sem declaração de guerra, os paraguaios capturaram o vapor brasileiro que conduzia o presidente (espécie de governador) designado para Mato Grosso. Em fins de dezembro, duas colunas invadiram o território mato-grossense.
López protestara em agosto de 1864 contra a intenção brasileira de intervir na guerra civil uruguaia e advertira o Brasil das consequências de um ataque a seus aliados do Partido Blanco. Não houve, no entanto, nenhuma ameaça ou agressão direta contra o Paraguai da parte da Corte do Rio de Janeiro.
Não existia, assim, justificativa para o Paraguai invadir o Mato Grosso, em seguida o Rio Grande do Sul e ocupar Uruguaiana. Aliás, a fim de atacar o território gaúcho, López violou o território argentino, possibilitando a aliança com o Brasil que não teria ocorrido sem essa provocação.
Como se explica que um país cuja população em 1860 se estimava em cerca de 400 mil habitantes desafiasse a Argentina, com 1,7 milhão, o Brasil, com 9 milhões, e o Uruguai, com 250 mil, num total de menos de meio milhão contra 11 milhões?
A explicação emerge da comparação dos efetivos dos exércitos prontos a entrar em combate, em que o Paraguai levava vantagem de quase três contra um (77 mil homens contra 18.300 do Brasil, 6 mil da Argentina e 3.100 do Uruguai, totalizando 27.400 aliados).
Daí a estratégia de López de tentar, por meio do efeito surpresa de uma ofensiva fulminante, vitória que lhe permitisse resolver em favor de seu país as questões fronteiriças e de liberdade de navegação pendentes com o Brasil. Fracassada a guerra-relâmpago com a derrota guarani na batalha naval do Riachuelo e a capitulação das forças de ocupação de Uruguaiana (setembro de 1865), só então a luta se deslocou para o território paraguaio, invadido pelo Passo da Pátria (abril de 1866).
Seguiu-se vagaroso avanço aliado até que, já sob o comando do Duque de Caxias, a guerra entrou na decisiva fase das batalhas da dezembrada (dezembro de 1868), culminando na ocupação de Assunção (1/1/1869).
Doente, Caxias retornou ao Rio, convencido de que o conflito acabara. Temendo que o perigo só cessaria com o fim de López, dom Pedro 2º resolveu continuar a luta, numa decisão controvertida, análoga à tomada pelos Aliados contra Hitler.
A guerra se prolongaria ainda por 15 meses, durante os quais se concentrou boa parte do pior em matéria de devastação, atrocidades, morte em combate de crianças e da maioria da população masculina paraguaia. Os números dessa época são incertos, mas o Paraguai pode ter perdido 250 mil vidas, mais da metade de seus habitantes.
Dos 140 mil brasileiros que participaram da guerra, morreram cerca de 50 mil, mais de um terço, aos quais se somam 18 mil dos 30 mil argentinos e 5 mil dos 5.500 uruguaios. Mais de dois terços pereceram não em combate, mas em consequência de doenças, fome, exaustão e migrações forçadas da população civil obrigada a seguir o ditador.
O esforço de guerra custou ao Brasil o equivalente a 11 anos do Orçamento anual, gerando déficit contínuo nas duas décadas seguintes. Foi o que inspirou o célebre desabafo do barão de Cotegipe: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século”.
Iniciada quando findava a Guerra de Secessão americana, a do Paraguai se assemelha a ela na duração e ferocidade da luta, antecipando o estilo de conflito total do futuro. Guardadas as proporções, os danos em vidas e destruição foram também devastadores.
Para o Império brasileiro, ela encerra o ciclo de choques militares com os vizinhos da bacia do Prata, iniciado logo depois da Independência com a Guerra da Cisplatina (1825 a 1828) e prosseguido com as intervenções no Uruguai e na Argentina após 1850. Sequência dos atritos coloniais entre Espanha e Portugal, essa fase instável termina com a consolidação dos Estados nacionais e de suas fronteiras nas décadas finais do século 19.
Joaquim Nabuco julgou que a Guerra do Paraguai teve importância tão decisiva para os destinos dos países do Cone Sul que pode ser considerada o “divisor de águas” da história dessas nações. Ela teria marcado o “apogeu do Império, mas dela também procedem as causas principais da decadência e da queda da dinastia”.
O triunfo da monarquia representou o brilho final de uma estrela que se apagava. Por volta de 1880, a política exterior do Brasil atingira todos seus objetivos: afastara do poder seus inimigos em Assunção, Montevidéu, Buenos Aires; evitara a eventual reconstituição de uma união dos demais contra o Império; obtivera a livre navegação dos rios e as fronteiras que desejava com uruguaios e paraguaios.
Depois de 30 anos de variados conflitos, era como se a monarquia, exausta, tivesse perdido a energia para reformar-se a si própria, modernizando a estrutura social do país, debilitada pela escravidão.
Nessa mesma época, a Argentina e, em menor grau, o Uruguai logravam pôr fim à longa instabilidade da fase formativa, atraíam capitais ingleses e imigrantes europeus que as transformariam em nações mais modernas e prósperas que o Brasil.
A Guerra do Paraguai é tema histórico que se presta a controvérsias e geração de mitos a serviço de interesses ideológicos e políticos. O revisionismo argentino inventou a tese fantástica de que a causa de tudo seria a influência da Inglaterra imperialista. Entre os absurdos da fábula, omite-se que, no começo do conflito, o Brasil estava de relações rompidas com Londres desde a Questão Christie (1862 a 1865).
A tese deu origem no Brasil a panfletos como o que denunciou o suposto genocídio que teria provocado 1 milhão de vítimas num país cuja população não atingia nem a metade desse número. A pior distorção, obra tardia de partido político paraguaio, consistiu na metamorfose do tirano sanguinário que foi Solano López num estadista sacrificado no altar da pátria.
Quem desejar pisar em terreno firme nessas questões, dispõe de reconstituição primorosa da terrível tragédia, “Maldita Guerra”, de Francisco Doratioto, maior conhecedor brasileiro de história paraguaia. Livro até agora definitivo pela solidez da análise dos documentos, dele extraí dados e análises deste artigo.
A Guerra do Paraguai e as intervenções no Prata nos legaram herança amarga de perdas humanas e atraso econômico e social. Data da guerra encerrada um século e meio atrás a “questão militar”, a tendência do Exército de intervir na política, um dos fatores da queda da monarquia e fenômeno perturbador da democracia que se prolonga até nossos dias.
Os brasileiros como Rio Branco e Nabuco, que viveram na juventude as angústias da luta contra o Paraguai, adquiriram horror à guerra e às intervenções em países estrangeiros. Passaram a cultivar diplomacia avessa a julgar publicamente os demais, escrupulosa na observância do princípio de não se imiscuir na política interna dos vizinhos.
O esquecimento dessas lições de nossa história abriu caminho à volta da prática lamentável de condicionar a amizade com os vizinhos a distorções ideológicas. Não surpreende que isso tenha provocado perigosa deterioração do relacionamento com a Venezuela, a ponto de gerar tensão militar na fronteira e grave retrocesso na relação com a Argentina, nosso principal vizinho.
A República inseriu em sua Constituição a proibição da guerra de conquista. Posto à prova na crise do Acre, quando o país chegou perto do conflito, o compromisso com a paz foi mantido graças ao gênio diplomático de Rio Branco, que não se cansava de repetir que “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Mais tarde, nos anos 1970, o Tratado de Itaipu deu impulso ao projeto bilateral para ajudar o Paraguai no seu desenvolvimento econômico-social.
Finalmente, o ex-presidente José Sarney inaugurou com o ex-presidente argentino Raul Alfonsín processo de edificação de confiança mútua que culminaria em duas das maiores conquistas da política externa: o Mercosul e o abandono dos projetos secretos para construir a bomba atômica.
Superando dois séculos de confrontos, essas duas realizações complementares transformaram a bacia do Prata de antigo cenário de guerras em espaço de integração entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nosso dever é não permitir que desvarios ideológicos ponham em risco a tradição de paz com os vizinhos, maior título de glória do povo brasileiro.
*Rubens Ricupero, foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (Governo Itamar Franco) e embaixador em Genebra, Washington e Roma.
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