Nem parecia Jair Bolsonaro. O presidente que surgiu no
pronunciamento em rede nacional na noite desta terça (31) adotou um tom mais
tranquilo, ponderado e sem grandes malabarismos retóricos.
Parece tudo sob medida para servir de vacina contra os
murmúrios de crime de responsabilidade em torno de sua condução na crise do
novo coronavírus, mas talvez o presidente tenha demorado demais.
Seja como for, depois de falar em “gripezinha” e de supor
que seu “histórico de atleta” o tornaria quase imune aos efeitos da Covid-19,
como disse no apoplético pronunciamento da terça-feira passada (24), Bolsonaro
agora sacou o “maior desafio da nossa geração” para definir a pandemia
instalada entre nós.
O termo não saiu do nada. Ele foi tirado da fala do
comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que em mensagem gravada na semana
passada falou em “maior missão de nossa geração”, e trai a origem da inspiração
do novo posicionamento do presidente.
Se os militares, sejam da ativa ou da ala abrigada no
Palácio do Planalto e em outros prédios da Esplanada dos Ministérios, concordam
de forma geral que há riscos de instabilidade social associados à crise
econômica que quase certamente se agravará com a Covid-19, ninguém estava
satisfeito com a posição de Bolsonaro até aqui.
A gota d´água foi a visita do presidente a comerciantes em
área popular do Distrito Federal no domingo (29), um dia depois de ouvir do
ministro da Saúde, o engolidor de sapos Luiz Henrique Mandetta, que o
isolamento parcial defendido por Bolsonaro “por princípio” não era exequível,
nem recomendável.
Naquele ponto, o presidente redobrava a aposta na
irresponsabilidade sanitária que vinha marcando sua atuação desde o início da
emergência do novo coronavírus no Brasil.
O mal-estar estava colocado e piorou quando ficou claro que
os dois pilares do governo, Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça),
alinharam-se a Mandetta no questionamentos acerca da condução da crise pelo
presidente.
Restou a Bolsonaro recuar para sair das cordas. A crítica ao
isolamento social por meio de quarentenas foi mantida, mas com um verniz de
preocupação com o indivíduo afetado. Se tivesse adotado tal posição e não
buscado a polarização extrema, talvez o presidente não estivesse tão acuado
agora.
Duas mentiras foram programadas para o discurso, para não
perder o costume. Tentar associar a fala do diretor da Organização Mundial da
Saúde a uma suposta crítica ao isolamento foi mantido, mas de forma bem menos
assertiva depois que a organização negou isso —em resposta a um “test-drive”
que o presidente havia feito sobre o tema pela manhã.
Já o congelamento do preço de medicamentos, algo que já é
anunciado para abril em qualquer farmácia online de São Paulo, não foi
combinado com a indústria. Dada a gravidade da crise da pandemia do Sars-CoV-2,
que já matou 201 brasileiros até a tarde desta terça (31), esse é um ponto que
não deverá ensejar muito debate.
O pronunciamento até pediu uma “união nacional” entre
Poderes, governadores e setores da sociedade. Um avanço, dada a crispação do
embate de Bolsonaro com governadores ou o insuflamento feito pelo presidente de
atos pedindo para fechar o Congresso, o Supremo e outras delicadezas.
Naturalmente ninguém vai acreditar até que a realidade se
interponha, mas parece um avanço. A estabilidade emocional do presidente vem
sendo objeto de preocupação de auxiliares, conforme a Folha mostrou, e o
pronunciamento em modo ansiolítico deixou aliviados alguns observadores do
quadro.
A influência da ala militar do governo e também da ativa das
Forças também ficou evidente na quantidade de referências a ações sob o comando
do Ministério da Defesa. Guedes e suas medidas pontuais foram citados, mas sem
tanta pompa.
Isso tudo indica uma nova etapa do manejo da crise? Talvez,
mas, como dito, pode ser tarde. Bolsonaro já perdeu o Congresso e o Supremo,
que nunca teve de verdade.
Já a aparente tutela operada pelos militares sobre o
presidente, algo que já aconteceu antes e foi refutado depois, é algo muito
frágil dado o arcabouço familiar da corte bolsonarista e o temperamento instável
do ocupante do Planalto.
A responsabilidade imposta a todos os agentes pela Covid-19
poderá lhe dar tempo, mas as semanas de “gripezinhas” e de barata-voa no
governo não deverão ser facilmente substituídas pelo “todo indivíduo importa” e
o chamamento a “ações coordenadas”.
As panelas em fúria em antigos redutos bolsonaristas de
capitais são um eloquente sinal dessa dificuldade.
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