É incrível como cargos públicos e posições de poder terminam
impressionando até as pessoas mais críticas.
Um chefe
de Estado pode ser irresponsável, psicopata ou palhaço —sempre haverá
quem veja na sandice algum tipo de estratégia sofisticada.
Diante de um jumento, há quem ponha a mão no queixo e diga:
“Hum, esperem um pouco. Burro ele não é”.
Simpatizo com essa atitude. Se, por acaso, eu
encontrasse Adolf
Hitler numa reunião social, sei que minha opinião a seu respeito
acabaria melhorando.
Vejo-o numa rodinha de empresários e banqueiros; ele conta
uma piada não especialmente preconceituosa. Todos riem. Um garçom se aproxima.
“O senhor aceita uma empadinha de palmito?” Adolf é
simpático com o serviçal. “Não, agora não, obrigado.” Sua voz se torna mais
íntima. “Estou tentando dar uma emagrecida, hehe.”
O garçom já está se afastando quando Hitler muda de ideia.
“Ah, quer saber?” Ele pega a empadinha de palmito, e sorri. “Começo o regime
amanhã!”
Nada mais banal. Não duvido: Hitler deve ter sido capaz de
banalidades, entre um genocídio e outro.
Pego eu mesmo uma empadinha. “Puxa, afinal o Hitler não é tão ruim como dizem.”
Pego eu mesmo uma empadinha. “Puxa, afinal o Hitler não é tão ruim como dizem.”
Eu esperava um rottweiler de uniforme, latindo e babando sem
parar. Encontro um ser humano. Ele não está em surto psicótico o tempo inteiro.
Tem atitudes normais com relação a dietas, garçons e empadinhas.
Passo ao presidente Bolsonaro. Ele foi à TV para criticar as
medidas de isolamento contra o coronavírus, adotadas no mundo inteiro. Perdeu
muito apoio com isso, claro.
Há quem veja em sua loucura algum maquiavelismo
político. Vai saber. Bolsonaro terá condições, no futuro, de culpar outras
autoridades pela queda no PIB. Quando a crise passar, sairia fortalecido como
um defensor do crescimento econômico.
Minha impressão é diferente. Se os hospitais explodirem e o
número de mortes for o que se imagina, será difícil para Bolsonaro negar
responsabilidade direta pela catástrofe.
Não há cálculo, eu acho. Ele simplesmente acredita no que
diz. Acredita, por exemplo, que tem excelente condição física (a facada foi de
somenos) e que a maioria das pessoas terá, no máximo, os sintomas de uma
“gripezinha”.
Como entender as origens dessa convicção? Não é só burrice.
O burro normal tem medo de se contaminar.
As opiniões de Bolsonaro e de seus gurus se articulam num
sistema coerente. A tese da “gripezinha” combina com a negação do aquecimento
global, com a ideia da Terra plana, com a xenofobia racista, com a defesa da
liberação das armas de fogo.
Todos esses delírios têm pontos em comum. Em primeiro lugar,
há uma espécie de repulsa à própria ideia de que a humanidade é uma coisa só.
Assim, os direitos humanos não valem para todos os humanos —só para quem for
decente e honesto.
Reconhecer a crise climática é algo que pode unir franceses
e mexicanos, heterossexuais e homossexuais, crianças escandinavas e idosos do
Zambeze. É uma causa universal demais; irmana o mundo inteiro —e é isso o que o
extremista de direita não consegue aceitar.
Ele encontra, nessas teses delirantes, o passaporte
imaginário para um mundo em que ele é melhor e sabe mais do que os outros.
Proibir armas de fogo, assim como recomendar o isolamento na
pandemia, é sobretudo uma atitude de bom senso.
Mas o extremista foge do bom senso, mesmo que a custo do
ridículo, da ilogicidade, do terraplanismo. O animal quer fugir da manada, sem
perder a sua animalidade jamais.
Nesse ponto, sua orgulhosa irracionalidade se dá bem com o
liberalismo econômico. Cada um por si: nada mais certo, pensa ele. Tenho
direito a comprar armas de fogo, porque sei como usá-las. Além disso, não sou
um vagabundo. Logicamente, sou contra aumentar os gastos estatais, porque no
Estado só existem vagabundos. Digo mais: quem defende gastos
estatais é vagabundo também.
Enquanto diz isso, o neoliberal enriquece sem esforço no
mercado financeiro. Fazendo paródia de um candidato de direita nas eleições de
2018, o humorista Marcelo Adnet foi
ao ponto —o empresário riquíssimo de fato acredita que carrega nas costas 99%
da população, tendo ainda de aguentar a inveja de tantos parasitas.
O extremista de direita despreza o resto da humanidade.
Afinal de contas, é um atleta. Um atirador de elite. Um filósofo. Um miliciano.
Um gênio. Um torturador, com muita honra.
Quanto à ciência, à responsabilidade política, à democracia,
à humanidade, que fiquem para os imbecis.
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances
“Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.
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