quinta-feira, 30 de abril de 2020

MORRE NIRLANDO BEIRÃO

Naief Haddad, Folha de S.Paulo
​“Minha companheira de todos os dias passou a ser a palavra ‘limite’. Tentar tornar os obstáculos mais elásticos é o que me resta, na ansiedade de um legado ainda sonhado”, escreveu o jornalista Nirlando Beirão em “Meus Começos e Meu Fim”, livro lançado em maio de 2019.
O limite se impôs, enfim, a Nirlando. Ele morreu nesta quinta-feira (30) aos 71 anos em decorrência das complicações da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). Estava em seu apartamento no bairro de Higienópolis, região central de São Paulo.
“Queridos, Nirlando se foi há pouco” , escreveu no Instagram a dramaturga Marta Góes, mulher do jornalista.
Em julho de 2016, àquela altura com 67 anos, ele recebeu o diagnóstico de ELA, doença que se tornou conhecida mundo afora com o caso do físico inglês Stephen Hawking.
Dessa experiência, nasceu um livro. Mas não só. Existia um outro projeto que ele acalentava havia anos: contar a história de amor dos seus avós paternos. “Meus Começos e Meu Fim” (ed. Companhia das Letras) surgiu movido por esses dois impulsos.
O livro se converteu, então, no resultado do encontro de Portugal, onde viveram seus avós, com o Brasil, das memórias com as vivências dos dias de hoje.
“‘Degenerativa’ é uma palavra que tira você para dançar —uma dança de medo. ‘Degenerativa’, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou”, escreveu.
Antes do agravamento da doença, Nirlando se dividia nos trabalhos para revista, TV e blog. Era redator-chefe da Carta Capital, revista sob a direção de Mino Carta, e comentarista político do Jornal da Record News, comandado por Heródoto Barbeiro.
Também mantinha um blog no portal R7, em que deixava clara maior proximidade com as propostas da esquerda do espectro político.
Nascido em 1948, em Belo Horizonte (MG), Nirlando se formou em ciências sociais pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Apesar do encanto pela antropologia, foi o fascínio pelo jornalismo que prevaleceu ao longo da sua carreira. Em 1967, começou a trabalhar no jornal Última Hora e jamais deixou as Redações.
Notabilizou-se, sobretudo, pelo refinamento dos textos e pelo trabalho à frente de revistas de São Paulo.
“Sou hoje a minha mão direita. De todas as roldanas, polias, gruas e alavancas subcutâneas que comandam, com competência invisível nossos movimentos, este é o único item da anatomia que não me traiu miseravelmente”, escreveu em “Meus Começos e Meu Fim”, uma aula de jornalismo e de literatura.
Grande admirador da norte-americana The New Yorker, ele foi editor de política de Veja e de cultura na IstoÉ, revista pela qual também foi correspondente em Nova York. Também foi editor da Playboy, redator-chefe da Senhor e diretor-adjunto da Brasileiros.
Fundou as publicações Caras, Status e Wish Report, revistas posteriormente dirigidas por ele. Também nesse livro, escreveu: “Adoro o jornalismo tido como desimportante, das franjas [...], que é de fato o que retrata nossa época”.
Nos jornais, destacou-se como colunista social de O Estado de S. Paulo.
Nirlando gostava de contar um episódio vivido ao lado do senador Severo Gomes (1924-1992). Em uma visita à fazenda do senador, em São José dos Campos, onde havia muitos convidados, Severo se deu conta, de repente, da presença de Nirlando. “Você está aqui como ser humano ou como jornalista?”, indagou-lhe o anfitrião.
Nirlando lançou mão dessa passagem para discorrer sobre como um jornalista deveria se comportar. “De vez em quando, a gente é jornalista; de vez em quando, a gente é ser humano. Quando unimos as duas coisas, somos éticos”, afirmou ao diretor e apresentador Antônio Abujamra (1932-2015) durante o programa de entrevistas Provocações, da TV Cultura, em 2011.
Apesar do gosto pelo jornalismo, era bastante crítico em relação aos profissionais da área. De acordo com ele, dois setores da sociedade brasileira revelavam-se especialmente corporativistas, o Judiciário e a imprensa.
OUTROS LIVROS
No período em que era diretor da Caras, Nirlando escreveu “Caminho das Borboletas”, livro com depoimentos da modelo Adriane Galisteu sobre seu relacionamento de dois anos com o piloto Ayrton Senna (1960-1994).
Sua versatilidade, aliás, fica evidente por meio dos livros que levam a assinatura do autor. Entre os títulos, estão “Claudio Bernardes”, biografia do arquiteto carioca, “Original: a História de um Bar”, a respeito da casa paulistana e de outros bares famosos, e “Corinthians - Preto no Branco”, em parceria com o publicitário e amigo Washington Olivetto.
Também no programa “Provocações”, Nirlando disse que gostaria “de morrer serenamente, assistindo a um jogo do Corinthians”.
Não teve o desejo satisfeito porque o futebol, o Brasil, o mundo pararam durante a pandemia do novo coronavírus. Mas o jornalista, que manteve o humor refinado até nos momentos mais difíceis da doença, não gostaria de ser lembrado de modo melancólico.
Preferia que os amigos se recordassem da picardia que trouxe de Minas Gerais. Ou da auto-ironia. A certa altura do seu último livro, ao comentar as oscilações de humor durante a doença, ele se situa entre a barata tcheca e a felicidade hollywoodiana. “Tem dias que acordo Franz Kafka, tem dias que acordo Frank Capra.”
O jornalista deixa a mulher, Marta Góes, a filha, a engenheira de som Júlia Beirão, e os enteados, os jornalistas Antonio e Maria Prata.
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