Durou apenas algumas horas a suposta moderação do presidente
Jair Bolsonaro ao lidar com a crise gerada pela epidemia de covid-19. Se na
terça-feira à noite, em cadeia de rádio e TV, Bolsonaro deixou de lado o
costumeiro tom raivoso e se esforçou para soar presidencial, defendendo “a
união de todos, num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos”, na
quarta-feira de manhã o presidente voltou a ser o que sempre foi e, quem sabe,
sempre será.
Bolsonaro publicou em suas redes sociais um vídeo em que um
homem denuncia o suposto desabastecimento da Ceasa de Belo Horizonte. O homem,
então, passa a ofender os governadores que determinaram o isolamento social
como forma de conter a epidemia, chamando-os de “canalhas” interessados apenas
em “ganhar nome e projeção política”, enquanto “o presidente está brigando
incessantemente para uma paralisação responsável”.
Trata-se de fake news – mais uma patrocinada pelo
presidente, que já protagonizou o vexame de ter algumas de suas postagens
suspensas pelos administradores das redes sociais por colocarem em risco a
saúde pública ao disseminarem falsas informações sobre a pandemia de covid-19.
Em nota encaminhada à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a Secretaria de
Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, que administra a Ceasa,
informou que a denúncia do vídeo compartilhado por Bolsonaro “é inverídica”,
pois não há desabastecimento.
A ministra Tereza Cristina já vinha dizendo reiteradas vezes
que não há desabastecimento. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas,
informou na segunda-feira que a logística para distribuição de alimentos está
funcionando. Ou seja, o presidente dá crédito ao que diz um desconhecido em vez
de confiar em seus próprios ministros – como, aliás, ficou claro no caso do
ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja amarga tarefa de convencer a
sociedade sobre a necessidade de isolamento social é constantemente sabotada
por Bolsonaro.
Assim, o presidente solene e conciliador do pronunciamento
da terça-feira em rede nacional é um personagem de ficção. Horas antes de ir à
TV para tentar convencer os brasileiros de que passaria a levar a sério o que
diz a ciência sobre a pandemia, Bolsonaro – o verdadeiro – distorceu uma fala
do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, em
favor dos trabalhadores que perderam renda, para dizer que “a OMS se associa ao
presidente Bolsonaro” na defesa do fim do isolamento social. A repercussão da
declaração de Bolsonaro obrigou o diretor da OMS a deixar de lado suas
atividades para desmentir o presidente brasileiro e dizer que continua a favor
do isolamento.
Além disso, no mesmo dia em que Bolsonaro pretendeu se
passar por estadista na TV, o País ficou sabendo que o vereador Carlos
Bolsonaro, filho do presidente e articulador do chamado “gabinete do ódio”,
passará a ter uma sala no Palácio do Planalto. Não se sabe o que o vereador faz
na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, mas sabe-se muito bem o que ele fará
junto com o pai em Brasília: continuará a alimentar as redes sociais do
presidente com fake news destinadas a confundir a opinião pública e
causar confusão, hábitat do bolsonarismo. A tentativa de disseminar o pânico a
respeito de um suposto desabastecimento de alimentos no País é só um aperitivo
do que essa turma é capaz.
Diante disso, é preciso muita boa vontade – ou ingenuidade –
para levar a sério a metamorfose de Bolsonaro. Afinal, o que mudou desde que o
presidente desdenhou dos mortos pela pandemia e atacou todos os que dele
discordavam até horas antes do discurso na TV? Por que a “gripezinha” se
transformou, de uma hora para outra, no “maior desafio de nossa geração”?
Pode-se acreditar que Bolsonaro, numa incursão pela Estrada
de Damasco, tenha tido uma iluminação transcendental e se conscientizado
subitamente da gravidade da crise, mas o mais provável é que o presidente, como
sempre, só esteja pensando em si mesmo e na preservação de seu capital
eleitoral. O ensurdecedor panelaço que acompanhou seu discurso na TV mostra que
grande parte dos brasileiros não se deixou tapear.
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