Só o futuro dirá mas, pelo pronunciamento de ontem por rede
nacional de televisão, está caindo a ficha do presidente Jair Bolsonaro. Com
atraso, parece ter começado a se mover na direção do bom-senso que a realidade
está fazendo prevalecer em todo mundo, em governos populistas de direita, como
o dele e o de Trump nos Estados Unidos, e de esquerda, como o de Lopez Obrador
no México.
Pela manhã, o presidente havia dado a entender que usaria a
fala do diretor-geral da OMS Tedros Ghebreyesus para defender o fim do
isolamento horizontal, mas teve que recuar diante do desmentido formal da
Organização.
Mesmo assim, Bolsonaro sonegou frases para montar uma versão
que, para os mais desinformados, parece ser uma concordância com a sua posição.
Mas em nenhum momento ousou defender o fim do isolamento social, mesmo porque o
número de mortes e infectados entre nós começa a crescer de maneira
exponencial, e ainda nem estamos no pico da epidemia.
Cada vez mais solitário, o presidente Bolsonaro é um homem
atormentado, conforme depoimento de pessoas que estiveram com ele recentemente.
Alguns relatos falam em choros súbitos, e não seria estranho, pois há meses o
presidente, ele próprio, já declarou que chora durante a noite.
Reclama dos ministros, acha que a imprensa elogia Mandetta,
ou Moro, ou Guedes para diminuí-lo, como se ter escolhido bons ministros não
fosse uma qualidade sua. Parece sentir não estar à altura do momento. Mas,
apesar do comportamento errático que frequentemente espanta ministros e
assessores palacianos, Bolsonaro consegue manter um apoio na classe militar, na
qual desde o começo baseou seu governo.
Militares influentes, mesmo discordando de muitas atitudes,
levam em conta sua reclamação de que o Congresso e a imprensa não o deixam
trabalhar, emperram suas decisões com críticas exageradas e posições
radicalizadas, como se ele não fosse o primeiro a radicalizar.
A organização de seu governo abriga cerca de mil militares
em diversos escalões, inclusive oito ministros, dentre eles os que têm gabinete
no Palácio do Planalto. Esse aparelhamento militar da máquina estatal é
consequência natural, pois Bolsonaro fez sua vida política apoiado pelas
corporações militares e por membros delas mesmo fora das três Armas, como
integrantes de empresas de segurança e milicianos que a família condecorou e
empregou.
Essa atitude faz com que os militares tenham pontos em comum
com o presidente, mesmo quando discordam das estratégias ou atitudes. Há uma
admiração pela maneira como conseguiu eleger-se deputado federal por quase trinta
anos e chegar à presidência da República com apoio popular, como se esse apoio,
coroado em 2018, tivesse o condão de resgatar a imagem dos próprios militares.
Bolsonaro faz questão de manter essa aura de vencedor, e
quando há alguma discussão mais difícil dentro do governo, ele assume a solução
alegando: “Quem tem voto aqui sou eu”. Ontem, esse homem assombrado por
fantasmas viu-se diante de uma situação inusitada, o combate ao Covid-19 que
provoca a maior crise humanitária das últimas décadas no mundo, e a data 31 de
março de 1964, que para ele e os militares em geral, especialmente os de uma
geração ainda na ativa, representa um paradigma do qual insistem em se
orgulhar, como mostra a ordem do dia anacrônica do ministro da Defesa Fernando
Azevedo e Silva.
A luta contra o comunismo num mundo em que esse sistema
político nem mesmo existe mais, é o maior elo entre os militares e Bolsonaro, e
ele se vale disso para alimentar o sentimento de lealdade. O perigo de haver
revoltas populares por falta de comida e dinheiro é uma ameaça que o presidente
vende para justificar sua insistência contra o isolamento horizontal. O
fantasma da volta de Lula e do PT, a que o próprio Bolsonaro alude volta e
meia, aliado à memória do golpe de 64, é um amálgama que os une, ainda que
completamente equivocado.
Bolsonaro usa essa lembrança para fazer política, pois lhe
convém manter essa dicotomia “eu contra ele”. Mas ele, que pela manhã havia
feito um comentário sobre o golpe militar dizendo que foi “o dia da liberdade”,
à noite não se pronunciou sobre o tema, demonstrando, talvez pela primeira vez,
que, por momentos, sabe separar o grave período por que a humanidade passa da
politicagem que ontem ainda manchava seu pronunciamento com a tentativa de
distorcer as palavras do diretor-geral da OMS.
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