Em 1963, tempo da Guerra no Vietnã, ele nos perguntou
quantas mortes haveriam de ocorrer, até que o homem se desse conta de que muita
gente tinha acabado de morrer. Em 2020, tempo de vírus poderosos e líderes opacos,
Bob Dylan sopra no vento uma longa homenagem a John Kennedy e a uma época de
experimentação e esperança.
“Ele foi morto como um cachorro à luz do dia”, canta Dylan
ao abrir a canção. “Era uma questão de tempo, e o tempo estava correto. Você
tem dívidas a pagar, e nós viemos cobrar. Vamos matar você com ódio e nenhum
respeito”.
O assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, marcou toda
uma geração. Era como o fim precipitado de alguma coisa que nem bem havia
começado. Um momento, descreve Dylan, em que o espírito de uma nação foi
rasgado. Espírito que entrou em “longa decadência”.
Era o tempo da luta pelos direitos civis. Dos direitos dos
negros, das mulheres. Da música como ímã para juntar gente interessada em mudar
o mundo. Tudo isso está em Murder most foul, que o poeta incansável lançou
inesperadamente nas redes sociais. Bem no momento em que o mundo procura achar
forças para combater uma grande pandemia.
Kennedy ia além do America First. Ele foi uma espécie de
símbolo de um tempo que estaria para nascer. Apesar do Vietnã, apesar da
invasão da Baía dos Porcos. Mas tinha o charme de uma liderança cosmopolita.
Alguém capaz de encantar o mundo.
Praça vazia
O mesmo mundo que hoje assiste, quase impotente, à expansão
de uma doença capaz de levar centenas de milhares de vidas em poucos meses.
Tempo em que sobram preocupações e faltam lideranças capazes, ao menos, de
inspirar ondas de confiança no planeta sobressaltado.
A liderança chinesa acredita haver feito o dever de casa.
Conseguiu conter a expansão do coronavírus por meio de uma dura política de
isolamento social e testagem em massa da população. Pode ter conquistado apoio
interno com a vitória, ainda que parcial. Mas não inspira, nem pretende
inspirar, o resto do mundo.
A Itália, país que até hoje sofreu as maiores perdas depois
da chegada do vírus, pecou pela falta de rápida resposta. Da Prefeitura de
Milão ao governo nacional, ninguém acreditou que a doença chegaria aonde
chegou. O exemplo, ali, vem de baixo. De uma população isolada que canta nas
janelas e celebra os seus médicos e enfermeiros.
As ruas de Milão e Roma estão desertas. E foi dali, na
deserta praça de São Pedro, no Vaticano, que surgiu a mais candente resposta,
até o momento, aos temores da humanidade nesse momento de incerteza. Sozinho, diante
daquele enorme espaço público vazio, o Papa Francisco dirigiu ao mundo a benção
Urbi et Orbi.
Ele falou para 1,3 bilhão de católicos. Mas, de certa forma,
parecia estar se dirigindo ao mundo inteiro. Lembrou que a humanidade se calou
diante de guerras e injustiças. Criticou a opção preferencial pelo lucro. “Não
ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”, disse
Francisco.
Empatia
O grave tom do pronunciamento de Francisco contrastou com a
linguagem quase negacionista de líderes nacionais na Europa e em outras partes
do mundo. Uma linguagem politicamente calculada, mas que tinha pouco de empatia
e de conforto.
A mais notável exceção parece ter sido a da chanceler Angela
Merkel, da Alemanha. Em rara emissão em rede nacional de televisão, ela
explicou à população de seu país como o governo alemão reage ao que ela chamou
de maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.
Merkel ressaltou a necessidade de atuação conjunta de
governo e cidadãos na luta contra a pandemia. Elogiou os profissionais de saúde
e lembrou à população que era necessário deter a velocidade de expansão do
vírus, para não sobrecarregar os hospitais. E aqui ela se apresentou aos
alemães mais humana do que nunca se havia apresentado.
“A Alemanha tem um excelente sistema de saúde, talvez um dos
melhores do mundo, mas nossos hospitais ficariam sobrecarregados se tantos
pacientes com infecções severas causadas pelo coronavírus fossem admitidos em
tempo tão curto”, observou Merkel.
“Eles não são apenas números abstratos em uma estatística,
mas sim um pai ou um avô, uma mãe ou uma avó, um companheiro. São Pessoas. E
nós somos uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importa”, completou.
Mudança
O discurso de Merkel, uma líder geralmente descrita como
fria e distante, espalhou-se rapidamente pelas redes sociais em todo o mundo.
Como um exemplo de transparência, sobriedade e empatia. Como exemplo de alguém
em quem se poderia confiar.
As últimas semanas têm mostrado que não adiantou muito a
tentativa de apresentar a pandemia como algo distante ou como manipulação da
mídia internacional. O vírus cruzou fronteiras e desafiou governantes que
duvidavam do alcance da pandemia.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que se
alinhava na turma dos céticos, foi pessoalmente atingido pelo coronavírus. E
seu governo adotou nova postura diante da pandemia. Johnson foi à televisão
para dizer que os britânicos deveriam permanecer em casa e sair apenas para
compras essenciais ou necessidades médicas.
A mudança chegou também à Casa Branca. No domingo (29), o
presidente Donald Trump pediu aos americanos que fiquem em casa pelo menos até
o fim de abril, para reduzir o ritmo de expansão da pandemia. Ele foi
convencido por seus assessores de que até dois milhões de americanos poderiam
morrer se mantivesse os planos iniciais de romper a política de isolamento
social nos próximos dias.
“Nada seria pior do que declarar vitória antes de conseguir
a vitória”, disse Trump, em raro momento de modéstia e conciliação.
As idas e vindas do presidente americano são típicas de uma
época de inquietude e incerteza. A pandemia surpreendeu o mundo em um momento
de pouca cooperação e muito confronto geopolítico. Um momento onde a
importância demasiada ao nacional tem desviado para o caminho do
provincianismo, onde florescem governantes de curta visão.
Poucos líderes de hoje se arriscariam, como fez Kennedy com
seus erros e acertos há meio século, a apresentar ideias ao mundo. Dylan
escolheu o tempo certo para lembrar o seu exemplo.
Marcos Magalhães é jornalista
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