A pressão do presidente Jair Bolsonaro para que o Ministério
da Saúde altere, contra as evidências e estudos médicos, o uso da cloroquina em
pacientes com covid-19 é uma patente violação do direito à saúde, tal como
previsto na Constituição de 1988. “A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, estabelece o art.
196 da Carta Magna.
A manobra do presidente é manifestamente perversa, por
insistir numa medida com graves riscos para a saúde da população. Nada mais
nada menos, Jair Bolsonaro quer que o Ministério da Saúde atue em sentido
contrário ao que preconiza a medicina. Até Nelson Teich, que assumiu a pasta da
Saúde assegurando “alinhamento completo” com o presidente, se recusou a assinar
o novo protocolo.
Mas isso não é obstáculo para Jair Bolsonaro. Se médicos não
podem assinar a mudança de orientação no uso da cloroquina, por ferir a ética
profissional, o presidente da República quer valer-se do interino, Eduardo
Pazuello, que não é médico – e sim um general de brigada intendente –, para
obter a desejada aquiescência a seus arbítrios. À plena luz do dia, Jair
Bolsonaro utiliza-se do cargo para causar dano à saúde da população, em
escancarado exercício abusivo do poder.
Vale notar que a insistência de Jair Bolsonaro no uso da
cloroquina não causa danos apenas à saúde da população. Ela coloca em risco a
própria permanência de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, uma vez que a
insistência em agredir a saúde da população, prescrevendo algo que afronta as
evidências médicas, se encaixa inequivocamente em uma das descrições dos crimes
de responsabilidade previstos na Lei 1.079, de 1950.
Assim estabelece o seu art. 7.º: “São crimes de
responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais: (9) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual
constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157
da Constituição”. Editada em 1950, a lei refere-se aqui a dois artigos da
Constituição de 1946. O primeiro protege os direitos fundamentais – direito à
vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade – e o outro, os
direitos sociais, incluindo a saúde. A Constituição de 1988 ampliou e tornou
ainda mais explícito esse direito.
No caso, a conduta do presidente da República não viola o
direito à saúde por uma limitação de recursos financeiros, falta de
infraestrutura, ausência de mão de obra qualificada ou alguma circunstância
condicionante da atuação do poder público. Não é que o Estado, em razão de
alguma limitação, se mostre incapaz de prover atendimento médico adequado à
população. O empenho de Jair Bolsonaro para ampliar o uso da cloroquina em
pacientes com covid-19 é de outra ordem e, portanto, de outra gravidade. O que
se vê é o uso insistente e arbitrário do poder presidencial para pôr em risco a
saúde da população.
É de tal forma desastrosa, do ponto de vista médico, a
ampliação do uso da cloroquina que governadores ouvidos pelo Estadão disseram
que ignorarão o novo protocolo, se houver. Além dos graves efeitos colaterais
da cloroquina e da ausência de comprovação de sua eficácia no tratamento da
covid-19, o novo protocolo não contribuiria para solucionar os problemas
principais das atuais circunstâncias, por exemplo, a falta de respiradores,
leitos e testes.
Os fatos são contundentes: o governo de Jair Bolsonaro é completamente disfuncional. E de pouco adianta a presença de pessoas oriundas das Forças Armadas, seja com experiência em coordenação, logística ou enfrentamento de crise, se a orientação que prevalece no Executivo federal são os delírios de Jair Bolsonaro. Não se pode tapar o sol com peneira. Não há racionalidade e tampouco moderação em um governo no qual o presidente da República tenta obrigar o Ministério da Saúde a emitir uma orientação que inequivocamente coloca em risco a saúde da população. É o poder direcionado a causar dano, e isso é crime.
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