O presidente Jair Bolsonaro atravessou a Praça dos Três
Poderes para pôr uma saia justa no presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), ministro Dias Toffoli. Acompanhado de ministros e um grupo de
empresários com os quais havia se reunido, fez-lhe uma visita surpresa, na qual
apelou para que as medidas restritivas motivadas pela crise do coronavírus
sejam amenizadas nos estados e municípios. A iniciativa coincidiu com a sua
decisão de autorizar o funcionamento da construção civil e das indústrias, que
o governo federal passou a considerar atividades essenciais, ou seja, fora do
regime de isolamento social.
Toffoli justificou as decisões da Corte em favor dos entes
federados: estados e municípios têm prerrogativas constitucionais reconhecidas
pelo Supremo para adotar o distanciamento social, conforme orientação das
autoridades sanitárias, entre as quais a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Toffoli também sugeriu que essas ações sejam coordenadas entre União, estados e
municípios. A assessoria de comunicaçao do Supremo confirmou que o encontro foi
marcado de última hora e não estava na agenda. Bolsonaro decidira fazer a
visita durante a reunião que teve com representantes da indústria, no Palácio
do Planalto.
A travessia a pé da Praça dos Três Poderes lembrou, com
sinal trocado, a ida do senador Antônio Carlos Magahães (PFL, hoje DEM-BA),
então presidente do Senado, ao Palácio do Planalto, para tomar satisfações com
o presidente Fernando Henrique Cardoso por causa da intervenção no Banco
Econômico, por ocasião do PROER, programa de reestruturação do sistema
financeiro adotado em razão do Plano Real. Imaginem uma situação inversa: os
ministros do Supremo atravessando a Praça dos Três Poderes de toga, para cobrar
a entrega do vídeo da reunião ministerial na qual Bolsonaro teria tentado
interferir na atuação da Polícia Federal (PF), conforme acusa o ex-ministro da
Justiça Sérgio Moro.
Para alguns ministros do STF, Bolsonaro está tentando
constranger o Supremo e dividir o ônus da pandemia de coronavírus com a Justiça
federal, que vem dando decisões favoráveis a estados e municípios, em todos os
níveis, contra medidas da União que atropelam a autonomia dos demais entes
federados, como reter respiradores adquiridos pelos governos estaduais.
Acompanhado dos ministros militares e do ministro da Economia, Paulo Guedes, a
reunião de Bolsonaro com Toffoli foi transmitida ao vivo, numa live, por
assessores da Presidência. Guedes foi dramático ao dizer que o Brasil corre o
risco de viver uma crise de abastecimento semelhante à da Venezuela ou de
desindustrialização, como a Argentina. Um dos empresários disse que a indústria
está na UTI e que pode morrer de inanição. Houve evidente exagero, porque
muitos setores da indústria, sobretudo construção civil, energia e alimentação,
estão funcionando.
Bolsonaro insiste em criticar as medidas de isolamento
social , devido à necessidade de retomada da economia, sem levar em conta que a
epidemia no Brasil entrou numa escalada violenta e que o sistema de saúde
pública, em vários estados, está em colapso, entre os quais, Rio de Janeiro,
Pernambuco, Ceará, Amazonas . Ontem, o Ministério da Saúde divulgou um balanço
no qual foram registradas 610 mortes nas últimas 24 horas. Estamos no limiar
dos 10 mil novos casos por dia de coronavírus, num total de 135 mil casos. São
Paulo continua sendo o epicentro da epidemia, com quase 40 mil casos e mais de
3,2 mil mortes. Até hoje Bolsonaro não visitou nenhum hospital, nem demonstra o
luto pelos que morreram. Trata a epidemia como uma fatalidade, com a qual
devemos nos conformar.
“Novo normal””
A narrativa de Bolsonaro em relaçao à economia mira a
parcela da população com mais dificuldades econômicas e reflete o lobby dos
empresários mais atingidos pela pandemia, como se a recessão fosse consequência
apenas das decisões de governadores e prefeitos. Na verdade, a recessão é
mundial. E a recuperação da economia é uma variável que depende muito de o sistema
de saúde não entrar em colapso. Se isso ocorre, aí sim, a paralisação será
totaL, com a adoção do “lockdown”, como aconteceu na Itália e na Espanha. No
Brasil, onde já há colapso, a medida está sendo adotada em bairros, cidades e
regiões por alguns estados.
No mundo, os países que adotaram medidas de isolamento mais
rigorosas conseguiram evitar uma disparada dos casos de covid-19. Itália,
Espanha, Inglaterra e Estados Unidos enfrentarem situação muito pior porque
demoraram a adotar as medidas. O Brasil até que estava conseguindo “achatar a
curva” da epidemia, mas a saída de Luiz Henrique Mandetta da Saúde, mas o
estímulo à volta às ruas por parte de Bolsonaro e seus apoiadores provocou o
relaxamento do distanciamento social e a explosão do número de casos. Agora, o
novo ministro da Saúde, Nelson Teich, constrangido e ainda meio perdido na
pandemia, corre atrás do prejuízo.
A grande questão com relação ao coronavírus é que não existe possibilidade de volta à plena normalidade. Em termos sanitários, nada será como era antes enquanto não houver uma vacina ou medicamento eficaz contra o vírus, que pode continuar circulando nos próximos anos. O impacto da pandemia na divisão internacional do trabalho, nas atividades da indústria, do comércio e dos serviços e nas relações de trabalho, em muitos aspectos, pode ser irreversível e está sendo chamado de “novo normal”. No caso do Brasil, por causa das grandes desigualdades sociais e da vastidão da economia informal, essa mudança terá características sociais dramáticas, porque muitas atividades serão bastante reduzidas ou simplesmente deixarão de existir.
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