Quando Jair Bolsonaro falou que “o povo está conosco. As
Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade e da
verdade, também estão ao nosso lado”, não disse coisa nenhuma.
Foi apenas uma construção astuciosa, mas, como o capitão não
consegue parar, acrescentou: “Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só
exigiremos. Faremos cumprir a Constituição. Será cumprida a qualquer preço”.
Logo ele, que se julga “realmente, a Constituição” e se referiu às “minhas
Forças Armadas”. Ganha um resfriadinho em Caracas quem não conseguir juntar lé
com cré.
Para quem vive uma pandemia com a marca dos 10 mil mortos
batendo à porta e uma inédita recessão já instalada na economia, esse tipo de
encrenca não era necessária.
O capitão passou mais tempo no baixo clero da Câmara do que
no Exército, onde conheceu melhor as sendas da indisciplina do que as normas da
corporação. Nelas, também não se enquadrava, por exemplo, o major e ex-deputado
Curió do Araguaia. Levado ao Planalto por um sentimento antipetista, Bolsonaro
flerta com a anarquia militar.
Essa anarquia, resultante de divisões dentro das Forças
Armadas, se fez sentir na política brasileira do século passado, até que perdeu
ímpeto em 1977 e desapareceu com a redemocratização.
Na crise que Bolsonaro incentiva, misturam-se ingredientes tóxicos. O primeiro
deles é a influência de sua família no governo.
O que restava do prestígio militar do marechal Henrique
Lott, poderoso ministro da Guerra de 1954 a 1959, esvaiu-se em 1962, quando sua
filha Edna elegeu-se deputada estadual. Com 3 dos 5 presidentes-generais
(Castello Branco, Emílio Médici e Ernesto Geisel), a história foi outra, e seus
familiares não se metiam no governo. Castello demitiu um irmão porque aceitou
um presente e não moveu um dedo quando a Marinha negou ao seu filho a promoção
a almirante.
O segundo ingrediente tóxico vem a ser o “núcleo militar”
formado no Planalto. É composto por militares da reserva e por um general da
ativa agregado. Governos que não tiveram essa bizarrice funcionaram: José
Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Os que a tiveram: Costa e Silva e, de
certa forma, Figueiredo, deram-se mal. Fora da linha de comando, só há a
bagunça.
O terceiro ingrediente é a simpatia de Bolsonaro pela
opinião de sargentos e suboficiais, somada ao expresso apoio dado a policiais
militares amotinados. A ele se junta uma militância parruda e agressiva.
Nos últimos 50 anos, o Brasil teve dois tipos de chefes
militares no Exército: aqueles de quem se sabia o nome e aqueles de quem não se
sabia. Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves estiveram no primeiro grupo.
Um enquadrou os generais depois da anarquia de 1969, na crise da doença de
Costa e Silva. O outro, comandou-os no governo Sarney, quando baixou o
chanfalho no capitão Bolsonaro.
Depois, no segundo grupo, vieram dois chefes que comandaram
a força por 13 anos. Deles não se fala e eles também não falam. Quem cruzar com
os generais Gleuber Vieira e Enzo Peri na rua, não saberá quem são.
A ambos aplica-se a lição que Ernesto Geisel deu a um
paisano que lhe perguntou quem era um general que ele promoveu à quarta
estrela. “Um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.”
Chamava-se Jorge de Sá Pinho.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”.
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