A internet, com todas as suas contribuições às ciências
humanas, também produziu, vejam só, uma teoria “psicológica”. Trata-se do
complexo do pombo enxadrista, um fenômeno que tem tudo a ver com o espírito do
tempo bolsonarista.
Diz esse conceito, comumente empregado para descrever a
inutilidade do debate científico com os negacionismos de todas as espécies, que
argumentar com certas pessoas é o mesmo que jogar xadrez com um pombo: ele vai
defecar no tabuleiro, sair voando e derrubando todas as peças e ainda alardear
que venceu a partida.
A dinâmica entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro desde o pedido
de demissão do ex-ministro até o ato da última terça-feira, 5, com a divulgação
da íntegra do depoimento de Moro à Polícia Federal, é em tudo idêntica a uma
partida de xadrez entre um humano e um pombo.
De forma sucinta e extremamente calculada, Moro tratou de:
1) entregar provas, evidências, testemunhas e caminhos de investigação para
todas as suas declarações do dia 24 de abril e 2) evitar dizer que Bolsonaro
cometeu algum crime.
Essas duas primeiras estratégias visam evitar que o ex-juiz
e ex-ministro: 1) seja acusado de ter praticado denunciação caluniosa e 2) seja
acusado de ter prevaricado diante do que sabia serem pedidos ilícitos do então
chefe.
Tomado esse cuidado, Moro passou a executar seu outro grande
objetivo com o depoimento: enredar o presidente e desenhar para a PF e o
Ministério Público Federal o caminho das pedras e do xeque-mate no pombo.
Frisou, inclusive numerando (talvez tenha grifado com caneta
marca-texto ao final e marcado com post-its, daí a demora do depoimento de oito
horas), os elementos de prova e o caminho para buscar novas:
1) o próprio depoimento;
2) mensagem de WhatsApp de Bolsonaro a ele em 23 de abril
dizendo que o inquérito do STF sobre fake news era um motivo para trocar o diretor-geral
da Polícia Federal;
3) o histórico de pressões passadas e recentes para a troca
de Maurício Valeixo e o superintendente da PF no Rio, inclusive dizendo que
Bolsonaro mentiu publicamente sobre as razões para a troca no Rio (e apontando
dados públicos que desmentem o presidente);
4) declarações de Bolsonaro se autoincriminando em
pronunciamento após sua demissão;
5) a reunião de ministros gravada em que Bolsonaro fez pressão pública pela
troca na PF;
6) relatórios da Abin mostrando que já havia relatórios de
inteligência da PF para a Presidência e que, portanto, a justificativa de
Bolsonaro não para em pé;
7) que os relatórios podem ser pedidos à PF se a Abin não
fornecer;
8) mais mensagens de WhatsApp de seu celular.
Mais: Moro evoca o testemunho de vários ministros, com
destaque proposital aos militares. Mexe com o senso de disciplina e senso de
dever das Forças Armadas e aposta que os generais não vão mentir para proteger
o presidente.
O golpe fatal: Moro deixa claro que a verdadeira preocupação
de Bolsonaro era com o inquérito do STF, tanto que dá a cereja do bolo do
depoimento, quando diz que tem outra mensagem do presidente para si sobre esse
assunto (ainda inédita).
Na sua vez de mover as peças, o que fez Bolsonaro? Como um
pombo, estufou o peito, abriu as asas e desandou a falar no cercadinho em
frente do Alvorada. “Produziu mais elementos para se autoincriminar”, comentou
um frio observador da partida.
Além de ter um pombo como adversário, Moro tem outro trunfo: à frente do inquérito está Celso de Mello, que decidiu que a partida será transmitida ao vivo, sem cortes nem jogadas sigilosas. Isso inclui depoimentos dos senhores generais e o aguardado áudio da reunião ministerial – que, aliás, o presidente tinha ameaçado divulgar, antes de ser dissuadido pelos pacientes pajens de farda.
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