Já saiu no Brasil, traduzido para o português, o novo livro
de Thomas Piketty, economista francês, autor do best-seller de uns seis anos
atrás “O capital no século XXI”. Esse novo livro, “Capital e ideologia”, além
de vender a ideia do autor para um “socialismo participativo”, procura refletir
sobre as consequências da praga do novo coronavírus.
Virou irresistível tentação intelectual pensar e prever como
será o mundo depois da pandemia. A síndrome é genérica, se fala nisso nas
palestras acadêmicas, mas também nos papos de bar ou em festas clandestinas dos
que não temem a Covid-19. E é natural e justo que seja assim. De tanta
decepção, a Humanidade anda viciada em futuro, não quer saber do passado, e o
presente se tornou um assunto cafona, para quem não tem imaginação. Um assunto
de pobres de espírito.
A economia será sempre um fator importante na organização
social da humanidade. Mas penso que ela não é mais o fator decisivo nas
tendências de um tempo. Assim como a religião foi claramente determinante do
que nos aconteceu durante a Idade Média; assim como consagramos a razão como
leme e critério a partir do Renascimento; a economia comandou o juízo do mundo
desde finais do século XVIII, até terminar o XX. Nesse período, o ser humano se
fartou de autoglorificação pela capacidade de acumular, de autoconfiança por
não lhe faltar nunca o que vender, de autoindulgência por ser capaz de produzir
tudo de que precisávamos para mudar o mundo. Penso que o fim desse regime chega
com a criação e exacerbação do capitalismo financeiro, onde a produção de bens
não é mais a chave da história, mas um sistema de trocas que só absorve a quem
já tem e vira desesperança para o resto — os outros.
O “novo normal”, de que tanto temos falado, talvez seja a
descoberta do outro como indispensável à nossa sobrevivência, à nossa
inevitável solidão. Descobrimos, nesse novo normal, a solidariedade como o amor
sem sentimento de propriedade sobre o que é amado. E, isso, o capitalismo
financeiro ou o socialismo participativo não são capazes de nos prover.
Não sei adivinhar como será o mundo depois do coronavírus.
Não sei nem quando o bichinho vai parar de aporrinhar a Humanidade e, até lá, o
que ainda vai destruir pelo caminho. Mas acho que podemos esperar por um mundo
mais leve, menos arrogante, em que as grandes navegações não se darão mais
entre os continentes, nem nas nuvens de fabulosas aeronaves ou no éter de
nossos foguetes intergaláticos. Teremos que viver com coisas aparentemente mais
simples, que nos ensinarão a trocar esses estonteantes espaços conquistados
pelo encanto do tempo.
Nos anos 1970, os tropicalistas costumavam desafiar, ao
mesmo tempo, a crueldade antidemocrática da ditadura militar e a caretice de
uma esquerda que não sabia rir. Num debate a que assisti no MAM, entre Caetano
Veloso e João Ubaldo Ribeiro, os dois concordavam que a melancolia não era uma
atitude revolucionária e, às vezes, era preciso disfarçá-la para não contaminar
o consumidor. Acho que foi Ubaldo o primeiro a dizer que “Alegria, alegria”, um
hit contestatário de Caetano, com clara proposta de mudança radical na cultura
do país, era também um canto de disfarçada tristeza pelo que vivíamos naquele
momento. Uma distopia disfarçada em utopia, se isso fosse possível de ser dito.
Não precisamos recuperar o velho tropicalismo, não se trata
de voltar atrás. Mas é preciso recuperar a dúvida, desafiar o sistema binário
do “ou é isso ou é aquilo”, entender a democracia como o mais humano dos
regimes, pois seu resultado objetivo é o mais incerto. E talvez esteja aí a sua
beleza intrínseca e, quem sabe, seu fundamento. É preciso virar o jogo e, ao
contrário do que já fizemos, disfarçar a grandeza da utopia com gestos mais
simples de extrema objetividade.
Hoje, vivemos num mundo em que a economia da China, onde o coronavírus começou seu espalha-bosta, cresceu 3,2% neste trimestre; onde Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, dono da empresa Tesla, agitadora do mundo virtual, produz carros elétricos; em que hackers russos tentam roubar a fórmula americana da vacina para a Covid 19; onde célebres intelectuais, liderados por Noam Chomsky e J.K. Rowling, publicam manifesto contra o iliberalismo (com i), o ativismo progressista de esquerda; em que o Facebook, uma das quatro maiores corporações dos Estados Unidos, derruba páginas de direita na internet, acusadas de fake news; onde a Huawei, empresa do Sudeste Asiático, disputa com empresas escandinavas a conquista do mundo para o 5G, a internet das coisas, a era da informação mais rápida e absoluta; em que a Apple anuncia que vai lançar um iPhone menor e mais barato, capaz de atender a todos os níveis sociais da população do planeta; onde o World Wealth Report revela que o Brasil, onde se pratica sem pudor o genocídio dos infectados pelo coronavírus, terá, até o final de 2020, cerca de 200 mil milionários; em que, agora que ninguém quer mais saber de petróleo, foram descobertas novas bacias que vão fazer da Guiana uma potência petroleira no mundo. Um mundo em que nada acontece como supomos que ia acontecer.
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