‘Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus
ódios e os meus medos? E daí?”
Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a
bela canção de Milton Nascimento “E daí?”.
Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me
surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando
dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a
morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.
Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua
ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos
culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa
pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das
estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.
No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro
disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o
que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a
saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o
problema.
Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão.
No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que
os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.
Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com
outra: necessidade do crescimento econômico.
A pandemia coloca hoje em discussão o crescimento pelo
crescimento. Amsterdã prepara-se para buscar modelos sustentáveis, depois da
crise, com o argumento de que o crescimento pelo crescimento é, na verdade, a
filosofia da célula cancerosa.
Durante a pandemia, manifestantes contra o isolamento social
fizeram buzinaços diante de hospitais em São Paulo. A mensagem que queriam
passar era da volta ao trabalho. Assim como não importava o conforto dos
doentes hospitalizados, também não importavam as mortes que viriam de uma
suspensão prematura da quarentena.
Nesse clima nacional, uma influenciadora digital dá uma
festa em plena quarentena e lança o grito: “foda-se a vida”, uma versão
tupiniquim do “viva a morte”.
Trabalho com essas resistências no cotidiano. Outro dia,
resenhei o artigo de um médico americano que falava do avanço silencioso da
pneumonia em pessoas atacadas pelo vírus. Para evitar tantas mortes, ele
sugeria que se usasse um oxímetro para medir constantemente o nível de oxigênio
no organismo.
Uma leitora reagiu furiosa a esse texto. Nunca mais me leria
pois, segundo ela, não compreendo como o Brasil é pobre e não tem condições de
pensar nesses instrumentos.
O oxímetro custa em torno de R$ 100. O que ela queria dizer
é que estamos condenados pelas circunstâncias a um grande número de mortes.
As pessoas que não se resignam diante das mortes com a
pergunta “e daí?” são vistas como personagens trágicas que se rebelam contra o
destino.
É nesse contexto de namoro com a morte que se dá também a
petrificação do pensamento, a recusa à modernidade, a negação de fenômenos
planetários que podem nos inviabilizar como espécie.
Insisto nesse ponto porque a história nunca estará completa
se nos detemos apenas no aquecimento global e deixamos de lado os hábitos
culturais e as pulsões que o nutrem.
Quando escrevermos a história da passagem dessa peste pelo
Brasil, não poderemos esquecer que ela foi politizada, tratada como um vírus
comunista, e uma nuvem de suspeição se ergueu contra os que queriam combatê-la
de frente.
Com um tempo e alguma pesquisa, talvez possamos estabelecer
um paralelo com a chegada dos colonizadores ao continente. Um conjunto de mitos
impediu que fossem vistos na sua dimensão real. E isso precipitou a ruína das
civilizações aqui existentes.
Ao longo do caminho, tenho enfatizado algumas ideias. Uma
delas é a necessidade de uma ampla frente pela vida para se opor à política da
morte.
A outra é a confiança de que as pessoas mudam, nem todas é
verdade, mas mudam. Quantos não concluíram, depois de atingidos, que o
coronavírus não é apenas uma gripe comum?
Outros, certamente, começarão a respeitar a ciência, podem
chegar ao ponto de admitir que a Terra é redonda, que vacina garante a
sobrevivência e que a humanidade está realmente ameaçada pela degradação
ambiental.
Uma aliança pela vida pressupõe uma tática diferente da
radicalização que produziu Bolsonaro.
Artigo publicado no jornal O Globo em 04/05/2020
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