Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na
esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de
processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de
apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao
trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise
do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações
públicas.
O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O
“estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao
“inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na
emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de
uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.
Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a
coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e
sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas
legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados
pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam
que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20%
de crentes na palavra presidencial.
Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais
sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de
Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de
outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação
mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos
impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem
quarentena com vista para o mar.
Dezenas de milhões começam a receber os esquálidos, mas
vitais, R$ 600, que levam a assinatura oculta do presidente. Cinco milhões de
trabalhadores formais já perderam seu empregos ou experimentam cortes
salariais. Multidões de comerciantes assistem, impotentes, à destruição de
negócios que garantem a renda familiar. Cumpre não confundir essa vasta parcela
da população com o núcleo militante bolsonarista, que reage a estímulos
ideológicos extremistas.
O apelo da “volta ao trabalho” cala fundo no Brasil que não
pratica o nobre esporte do home office. Uma sondagem conduzida pelo cientista
político Carlos Pereira e publicada no “Estado de S. Paulo (20/4) mostra nítida
correlação positiva entre apoio às ações de Bolsonaro na pandemia e a vivência
de prejuízo econômico pessoal. O medo de um vírus de consequências incertas
atenua-se diante da certeza da perda de meios dignos de subsistência.
A cláusula de exceção, detectada pela sondagem, é o
conhecimento direto de pessoa que faleceu sob a Covid. Dois terços dos óbitos
no Brasil concentram-se em cinco regiões metropolitanas. Num país de 217
milhões de habitantes, quase ninguém conhece algum dos mais de 7 mil mortos,
especialmente em milhares de cidades do interior.
Bolsonaro não perde eleitores, mas os substitui. Saem os
admiradores incondicionais do xerife da Lava-Jato. Entram os órfãos da
quarentena, espalhados social e geograficamente. Qualificá-los como ignorantes
ou incultos nada revela sobre eles. Diz muito, porém, sobre a bolha de classe
que delimita o olhar dos analistas.
“Não vão botar no meu colo uma conta que não é minha”,
reclamou Bolsonaro, referindo-se à sinistra contabilidade das mortes. O
presidente, que não se descolou de Trump tanto assim, cobra de outros a dívida
do emprego mas recusa a fatura dos óbitos. Ele nem simula governar, operando
como agitador de rua. De um lado, clama contra os governadores e provoca
aglomerações. De outro, abstém-se de usar suas prerrogativas para reabrir
escolas federais ou liberar acesso às praias e parques nacionais — e seu novo
ministro da Saúde jura respeito às determinações estaduais de isolamento
social.
A curva da Covid no Brasil tem a forma de um morro em
meia-laranja. Já a curva de nossa epidemia política vai adquirindo as feições
dramáticas de um Everest.
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