É imperativa a compreensão do alcance da firme reação
humanista com que homens públicos de diferentes tendências e origens estão
respondendo ao surto de barbarismo do governo Jair Bolsonaro. As manifestações
ponderadas de ex-ministros de Estado chamam à realidade muitos dos seus
sucessores, em áreas sensíveis como Direitos Humanos, Relações Exteriores e,
nesta semana, Defesa. A exortação enfática à razão visa o presidente.
Duas vantagens com as quais Bolsonaro ainda conta, porém,
impõem cautela na tradução dos manifestos em ação concreta: o apoio de parte da
opinião pública, que se reduziu, mas não acabou; e a sua ínfima, porém real,
capacidade de, mesmo cambaleando, ainda conseguir obter o apoio de um grupo
político como o Centrão. Às feras da barganha entregou, sem hesitar, a chave do
cofre bilionário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Uma
prova de que Bolsonaro ingressou, definitivamente, na fase 2 do seu governo, a
da sobrevivência.
Para isso, precisou recuar de promessas e remodelar o
teatro. Além do Centrão, quer a seu lado os egressos da carreira militar, da
ativa ou da reserva. Se há uma distorção do conceito de poder que habita
Bolsonaro esta é a que simplifica a conjugação do verbo mandar. A lógica é: ele
manda, todos obedecem. Os militares, como têm na disciplina um norte, se estão
no governo, defendem o governo.
Os argumentos recentes de três deles, apresentados para
justificar a crueldade e descaso presidencial com a população doente e
enlutada, são evidências desta missão. Um deles, a título de ser portador de
boa notícia, anunciou um plano econômico, ainda no esboço, cuja existência
ocultara do ministro da Economia. Outro, em fórum internacional sobre o
assunto, omitiu a perplexas autoridades a gravidade da situação brasileira. Um
terceiro alegou, em entrevista, os vários tipos de morte, inclusive no
trânsito, para se queixar da ênfase aos que perderam a vida com a infecção por
coronavírus.
Não está prevista, também, a substituição dos suspeitos de
corrupção e dos ministros ventríloquos das ideias estapafúrdias. Com uma
exceção recente: Bolsonaro já admitiria tirar o cargo de Abraham Weintraub. Sem
noção, desde sempre, além do conjunto da obra, decidiu estranhar a presença do
Centrão no seu ministério. Mas Ernesto Araújo e Damares Alves estão garantidos.
À medida que o governo vai se decompondo, as cabeças que
ainda davam algum sentido à primeira formação ficam esperando sua hora.
Paulo Guedes se mostra cada vez mais transtornado e
agressivo à moda presidencial, no ataque em marcha contra as instituições, os
Poderes, os governadores. Engole a seco o conflito do seu plano com as
concessões exigidas pela crise e decreta que o inferno são os outros. Sua presença
não é mais compreendida. Quando sair, o critério da homogeneidade deve elevar,
para seu lugar, a cotação do presidente da Caixa Econômica Federal. Se for,
combina.
Também estrela da concepção original, a ministra da
Agricultura, Tereza Cristina, sabe que vai sair, só não sabe quando. Ela se
enfraqueceu no bombardeio diplomático e ideológico à China, com quem o
agronegócio brasileiro mantém vigoroso mercado. É conhecida a máxima da prática
política de que ministro forte recebe pedidos e ministro fraco recebe apoio.
Não foram poucas as notas de apoio a Tereza Cristina, de cuja competência e
seriedade não há dúvidas.
Bolsonaro ainda detém instrumentos de poder, como as prerrogativas de governar, que não usa. Mas usa e abusa de outros, como a autoridade, que não tem. Situação que sugere a urgência de antecipar aquele choque de humanismo inserido nos manifestos referidos. Já espalharia um pouco de ar neste sufocante clima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário