Marcos Strecker e Vicente Vilardaga, ISTOÉ
A pandemia está colocando o Brasil no centro do mundo. O
País já se aproxima da marca de 1.000 óbitos diários. De forma certeira, a
Lancet, revista científica que é referência internacional, publicou um
editorial demolidor com o sugestivo título de “So what?” (E daí?). Disse que o
presidente se torna a maior ameaça ao combate da Covid-19 no Brasil. “Ele não
só continua semeando confusão, desprezando e desencorajando abertamente as
sensatas medidas de distanciamento físico e confinamento introduzidas pelos governadores
e prefeitos, mas também perdeu dois importantes e influentes ministros nas três
últimas semanas”, aponta a publicação. Com a antipolítica de Bolsonaro, o País
está se tornando um pária na comunidade internacional. A América Latina é o
maior foco de crescimento no mundo, e o Brasil é o responsável por isso. A
revista ressalta que o País tem a maior taxa de transmissão entre os 48 países
analisados pelo Imperial College, de Londres, uma das universidades de maior
prestígio da Europa. Na última semana, com mais de 188 mil infectados,
tornou-se o sexto país com maior número de casos — atrás apenas de EUA, Rússia,
Espanha, Reino Unido e Itália. O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta,
citado pela revista, declarou que o Brasil pode liderar o número de casos da
doença no mundo, e voltou a criticar Bolsonaro: “Os números falam por si só.
Ele fez o que ele quis fazer, mas a história vai dizer quem estava errado e
quem estava certo”.
Desde que o STF suspendeu a indicação do nome de
Bolsonaro para a direção da PF, a corte endureceu sua relação com o presidente
Enquanto o País padece, Bolsonaro luta para se manter no
cargo. O principal alvo das hostes bolsonaristas atualmente é o STF, que tem
inibido as vontades autoritárias do presidente. O isolamento crescente do
presidente pode ser verificado em várias decisões recentes do tribunal. Desde
que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a indicação de Alexandre Ramagem
para a direção-geral da PF, o STF endureceu sua relação com o presidente.
Bolsonaro atacou Moraes dizendo que a decisão era política e que o ministro só
ocupava um lugar na corte por causa de sua amizade com o ex-presidente Michel
Temer. Os outros ministros criticaram o presidente e consideraram
“inadmissível” qualquer ofensa pessoal aos magistrados. O ministro Gilmar
Mendes considerou a atitude de Bolsonaro “ilegítima e inaceitável” e
classificou as ofensas a Moraes de “censura personalista”. O ministro Luís
Roberto Barroso defendeu a “competência e integridade” de Moraes e disse que
sua atuação no STF “tem se marcado pelo conhecimento técnico e pela independência”.
Diante da decisão do ministro, manifestantes pró-Bolsonaro
foram protestar em frente ao prédio onde Moraes habita, em São Paulo, e dois
deles, um engenheiro de 64 anos e um autônomo de 58 anos, acabaram presos em
flagrante por difamação, injúria, ameaça e perturbação do sossego alheio. Os
dois pagaram fiança, mas foram proibidos de manter qualquer contato com o
ministro, pessoal ou indireto, e devem a partir de agora respeitar uma
distância de 200 metros de Moraes. Além disso, a Justiça determinou para os
dois acusados o recolhimento domiciliar durante a noite e nos dias de folga e a
proibição de deixar São Paulo por mais de oito dias sem autorização judicial.
Grupos radicais que apoiam o presidente, atuando com violência ou produzindo
fake news, estão sendo acompanhados de perto pelo STF por seu incitamento ao
ódio e iniciativas antidemocráticas. A Justiça atuou firmemente para impedir o
acampamento nos gramados da Esplanada do Ministério do grupo 300 do Brasil, que
diz lutar contra a “ditadura do STF”. Moraes é justamente o relator de um
inquérito que apura a divulgação de fake news com ofensas caluniosas e
difamatórias contra os ministros da corte e seus familiares. O inquérito se
aproxima do clã Bolsonaro. A PF identificou o filho 02 do presidente, Carlos,
como o coordenador das fake news contra o tribunal.
Vídeo ameaça o presidente
Os ministros do Supremo, porém, mantêm uma postura de
cautela diante das diferentes versões sobre o vídeo da reunião do conselho de
ministros, no dia 22 de abril, em que Jair Bolsonaro ameaçou demitir Sérgio
Moro (leia mais à pág. 30). Na gravação, segundo pessoas que a assistiram, o
presidente exigiu a troca do comando da PF do Rio para evitar que seus
familiares e amigos fossem prejudicados por investigações em curso. O
presidente foi claro e afirmou que ele demitiria o próprio Moro caso a
substituição do superintendente não fosse feita. A defesa do ex-juiz solicitou
ao ministro Celso de Mello, relator do caso, que divulgue a íntegra do vídeo
para comprovar a acusação contra Bolsonaro de interferência na PF. Alega que “a
reivindicação pela publicidade total da gravação trará à luz inquietantes
declarações de tom autoritário inviáveis de permanecerem nas sombras”.
Outra razão que motivou o presidente a interferir na PF é o
ataque a faca de que foi vítima durante a campanha eleitoral. Sempre insinuou
que havia mandantes. Mas a PF concluiu em um segundo inquérito, entregue à
Justiça na última quarta-feira, 13, que Adélio Bispo de Oliveira agiu sozinho,
por iniciativa própria e sem ajuda de terceiros. A conclusão diminui um dos
argumentos do presidente para mostrar insatisfação com o órgão. A investigação
sobre a possível interferência na PF pode, segundo juristas, levar a um
processo por crime de responsabilidade. Na contramão dos fatos apurados até
agora, Bolsonaro nega qualquer tentativa de interferência. Declarou que nenhum
familiar dele foi investigado pela corporação. Mas a PF tinha um inquérito
eleitoral até março passado que apurava se o seu filho Flávio cometeu lavagem
de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral ao declarar seus bens nas eleições
de 2014, 2016 e 2018. Flávio atribuiu valores diferentes para um mesmo
apartamento. A PF concluiu o caso e pediu seu arquivamento, sem quebrar seu
sigilo fiscal e telefônico. Esse mesmo imóvel é objeto de outra investigação do
Ministério Público do Rio sobre a prática da “rachadinha”. Ainda corre na
Delegacia de Repressão a Corrupção e Crimes Financeiros da PF do Rio um
inquérito que cita Fabrício Queiroz, braço-direito de Flávio e amigo de 40 anos
do presidente. A PF foi envolvida em mais um episódio ligado à família
Bolsonaro. A pedido do presidente, abriu um inquérito para apurar a menção ao
seu nome feita pelo porteiro do seu condomínio da Barra da Tijuca, no caso
Marielle. Fora da PF, Flávio e Carlos Bolsonaro são alvos de cinco
procedimentos de investigação do MP carioca que apuram a existência de
funcionários fantasmas em seus gabinetes. Ao todo, 19 familiares de Bolsonaro
estão sob investigação no Rio.
No STF, o presidente não tem encontrado respaldo para suas
atitudes irresponsáveis. No mês passado, ele sofreu uma contundente derrota
numa votação do pleno do STF, que, por 9 a zero, decidiu que o presidente não
tem competência para tornar sem efeito, por meio de decreto, decisões tomadas
por governadores e prefeitos para conter o contágio pelo coronavírus. Bolsonaro
não pode se meter em atribuições que são dos governos estaduais e municipais.
Mesmo assim, na segunda-feira, 11, o presidente voltou à baila e publicou em
uma edição extra do Diário Oficial da União um decreto que inclui salões de
beleza, barbearias e academias esportivas na lista de atividades essenciais que
podem funcionar durante a quarentena. O próprio ministro da Saúde, Nelson
Teich, foi pego de surpresa pela decisão.
De qualquer forma, graças à decisão anterior do STF, o novo
decreto de Bolsonaro deve virar letra morta, já que cabe aos governos locais
decidir o que pode ou não funcionar durante a pandemia. Vários governadores e
prefeitos já declararam que vão ignorar o decreto. Mas as declarações diárias
do presidente contra a quarentena surtem efeito. Desestimulam a população a
seguir as normas de contenção e servem para abarrotar ainda mais os hospitais,
já sem condições de atender a pacientes em UTIs em vários casos.
Em mais uma atitude nociva, Bolsonaro manteve até a
terça-feira, 12, um silêncio antirrepublicano de dois meses sobre o resultado
de seus testes de coronavírus. Finalmente, a Advocacia Geral da União (AGU)
entregou ao STF três testes de coronavírus do tipo PCR, realizados pelo presidente,
em março, sob os codinomes de Airton Guedes e Rafael Augusto, mas com CPF e
data de nascimento corretos, que foram parar nas mãos do ministro Ricardo
Lewandowski — a quem coube a decisão de divulgá-los. Ele fez isso no dia
seguinte.
A entrega dos testes atendeu a um pedido do jornal
O Estado de S.Paulo ao tribunal, que alegou interesse
público sobre as informações referentes à saúde de Bolsonaro. A Justiça Federal
de São Paulo e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) garantiram ao
jornal o direito de ter acesso aos documentos. Os resultados mostraram que
Bolsonaro não estava infectado na época da realização dos testes. Segundo a
AGU, foram utilizados nomes de terceiros nos exames para a preservação da
imagem e da privacidade do presidente e por questões de segurança.
A divulgação dos testes, que respeita o princípio
constitucional do direito à informação, diminuiu a pressão sobre o presidente,
mas não aliviou sua situação. Mesmo que escape da inquirição do STF e das
dezenas de processos de impeachment protocolados no Congresso, por ora, ele é
uma figura que diminui a cada dia e também apequena o Brasil, que se pergunta
qual é o líder instalado no Planalto. Os bolsonaristas ainda se apegam à ideia
anacrônica de líder no sentido antigo, de um “herói” capaz de guiar as massas
pelo seu carisma. Mas, atualmente, o conceito mudou. O verdadeiro líder é
reconhecido quando é capaz de resolver problemas concretos da sociedade em uma
determinada situação. Nada mais distante do atual presidente, que anda na
contramão do mundo na maior emergência dos últimos cem anos. O líder é capaz de
unificar a sociedade. Bolsonaro, ao contrário, vive da polarização. O líder
protege a população. Bolsonaro ignora a saúde do povo em função de seu projeto
político pessoal. Ao contrário dos estadistas que cresceram com a crise
pregando transparência, cooperação, solidariedade e se apoiaram na ação dos
cientistas e na orientação dos especialistas, ele ignorou os conselhos técnicos
e até este momento defende um medicamento, a cloroquina, que não foi
referendado por estudos sérios — inclusive dois amplos trabalhos divulgados nos
EUA nos últimos dias. Além disso, insiste em propagar desinformação sobre a
doença, como um post no Instagram que mentia sobre os óbitos no Ceará. A rede
precisou colocar um aviso de fake news na mensagem — mais um papelão para o
presidente da oitava maior economia do mundo.
A publicação britânica Lancet apenas chancela o que os brasileiros
já sentem. Os ataques de Bolsonaro às ações que poderiam atenuar os efeitos da
doença fazem o País pagar um alto preço em vidas humanas. Mas também traduz uma
percepção internacional que já se cristaliza, afetando a imagem do País. O
Brasil vai na contramão do mundo. Para Bolsonaro, o desprezo pela vida humana e
por ações humanitárias provocou o repúdio da comunidade internacional e a
reprovação de órgãos como a Organização Mundial da Saúde. No último dia 26,
relatores da ONU criticaram o governo brasileiro por políticas que colocam “a
economia acima da vida” no combate ao coronavírus. A centenária revista The
Atlantic chamou Bolsonaro de “líder mundial do movimento negacionista da
Covid-19”. O Financial Times o apontou como um dos quatro líderes mundiais que
se recusaram a levar a doença a sério, ao lado do presidente da Belarus, do
Turcomenistão e da Nicarágua. Apelidou-os de “Aliança do Avestruz”. A crise na
imagem brasileira já estava em curso, mas se aprofundou com Bolsonaro, diz
Guilherme Casarões, professor da EAESP-FGV. “Ele ampliou a desconfiança. As
demissões de Mandetta e Moro mudaram a percepção internacional de o presidente
poder liderar o Brasil.”
Para o País, as consequências são desastrosas. O custo
humanitário é o mais alto e penoso, mas há também o dano econômico. Ações
coordenadas em linha com a experiência internacional, como o isolamento social,
os testes em massa e o monitoramento amplo da população abreviariam a
quarentena. Além de se preparar de forma coordenada para enfrentar o surto, o
País já deveria planejar a reabertura programada da economia. Como não há
planos, a retomada será ineficiente e sujeita a retrocessos. A inação do
presidente vai custar caro. “Com uma liderança apropriada, o Brasil claramente
teria a capacidade de salvaguardar a saúde das pessoas, mas agora é uma área de
alta incidência na América Latina. Isso não protege a economia, pelo
contrário”, declarou Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI. Por causa
das ações de Bolsonaro, ele calcula que a queda do PIB vai superar os 5,3%
previstos pela entidade este ano. Analistas já projetam um tombo de dois
dígitos. Pior, pode haver uma segunda onda de infecções, causando um rombo
ainda maior na economia.
Prejuízos ao país
À medida que o Brasil se torna um vetor de disseminação da
doença, a sua capacidade de liderança também é atingida. Desde o século XIX, o
País conseguiu liderar a América Latina com uma política de não ingerência e
poder brando. Agora, países vizinhos como Argentina, Paraguai e Chile já
discutem a ameaça que o Brasil representa com o avanço da Covid-19. Um vexame
para a tradição diplomática regional. Donald Trump, que Bolsonaro considera seu
maior aliado, segue dando rasteiras no brasileiro. Diz que o Brasil tem um
“surto sério” e avalia banir os voos entre os países. Já a China, maior
parceira comercial do Brasil, é atacada pelo chanceler Ernesto Araújo.
Bolsonaro destruiu o “soft power” cultivado ao longo de décadas pelo Itamaraty.
A Lancet resumiu bem o dilema brasileiro. Para a revista, a desorganização no
centro da administração do governo não é só um transtorno com consequências
fatais no meio de uma emergência sanitária, mas também um forte sinal de que o
líder do Brasil perdeu a sua bússola moral, “se é que alguma vez teve uma”.
Como a publicação aponta, o desafio para garantir o direito à saúde é, em
última análise, político. “O Brasil deve unir-se para dar uma resposta clara ao
‘E daí?’ do presidente. Bolsonaro precisa mudar drasticamente o seu rumo ou
terá de ser o próximo a sair”, diz a revista. Uma afirmação precisa e
verdadeira.
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