Dizem que vivemos a maior crise depois da Segunda Guerra.
Não conheci a Segunda Guerra: ela é tão antiga que me colheu nos primeiros anos
de vida.
Isso não me impede de comparar. Para o Brasil, creio, a
Segunda Guerra foi menos devastadora que a pandemia do coronavírus. Perdemos
471 homens e tivemos 12 mil feridos. Nesta semana, a pandemia já alcança 200
mil casos e ultrapassa as 15 mil mortes.
Na Segunda Guerra, Vargas demorou mas acabou encontrando o
rumo, e o Brasil se colocou do lado certo no conflito. Bolsonaro subestimou a
importância do vírus e, infelizmente, não alterou sua posição diante dos fatos,
recusando-se a desenvolver uma política nacional e solidária.
Isso configura uma tempestade perfeita. Tanto na guerra como
na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos.
Mas não adianta chorar. Sempre me interroguei sobre como
sobreviver no pior dos mundos. Não tive respostas definitivas.
Lembro-me de que estava cobrindo a chegada dos refugiados
albaneses numa praia italiana, no fim do regime. Na multidão que saía do navio,
vi um casal vestido modestamente, mas com muita elegância. Pareciam tranquilos
e felizes. Imaginei que eram ligados por um profundo laço amoroso, e isto os
ajudou a atravessar o pesadelo do regime autoritário de Enver Hoxha.
Mais tarde li “Homens em tempos sombrios”, de Hannah Arendt.
Ali era a coragem intelectual diante do stalinismo e do fascismo que despontava
como elemento essencial na sobrevivência.
Finalmente, quando li os escritores cubanos dissidentes,
muitos perseguidos e aniquilados, outros resistindo através de sua literatura,
cheguei a uma nova conclusão.
Creio que a expressei numa introdução ao livro do poeta Raúl
Rivero, cuja saída de Cuba para a Espanha acompanhei, tentando apoiá-lo também
do Brasil. Nesse caso, a sensualidade inspirada no cotidiano do próprio povo
pareceu-me um fator de sobrevivência e de recusa à mediocridade burocrática.
Apesar de tantas indicações na experiência de vida, a
tempestade perfeita me colhe numa situação singular. Será necessário inventar
porque, apesar das experiências terríveis dos outros, nenhuma das outras
tempestades perfeitas apresenta os ventos, trovões e raios como a nossa. A água
que aqui transborda, não transborda como lá.
Estamos diante de um inimigo invisível. Muitos de nós somos
do grupo de risco. A energia popular está distante porque fomos confinados. No
passado, ouvia bater de panelas. Agora, nem isso. De vez em quando, alguns
gritos ao longe, ou mesmo a voz de crianças empinando pipas no sol de outono.
O governo é de extrema direita. Ainda há liberdade de
criticá-lo, mas na solidão virtual. Nos anos 60, fervilhavam as assembleias,
uma corrente fraternal eletrizava os opositores, amores brotavam no asfalto
como as flores do poeta.
Na semana passada, preparando-me para uma live com o
embaixador Marcos Azambuja, escrevi um artigo sobre as características gerais
dessa tempestade: ecologia, política externa, experiências históricas de
negação da realidade.
Ao concluir o artigo preparatório, cheguei à conclusão de
que era preciso aos poucos responder para esta época a pergunta que me
intrigava em outras épocas e lugares.
Não sou adepto da ideia do novo homem. Fico com Shakespeare
e acho que a humanidade com suas misérias e grandezas não muda essencialmente
através do tempo. No entanto, não há dúvida de que a pandemia nos coloca a
questão da solidariedade. Por menos que seja nosso gesto, sentimos que a
resposta específica para esse tempo sombrio passa por aí.
Da mesma forma, a luta pela democracia, o esforço para
manter nossos valores culturais e espirituais diante do impulso destruidor da
extrema direita e sua política de morte.
Só está faltando talvez a superação dos ressentimentos, a
certeza de que é possível formar uma ampla unidade de diferentes, sem
veleidades hegemônicas, algo que em outras épocas foi o instrumento decisivo
para combater governos extremistas.
Evidentemente, não tenho a fórmula acabada para esta união.
Parece-me apenas que discutir, neste momento, quem tem mais culpa na ascensão
de Bolsonaro é continuar no pântano.
Artigo publicado no jornal O Globo em 18/05/2020
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