A internet, sinônimo de participação, é o instrumento de uma
revolução democrática destinada a arrancar o poder das mãos de uma casta de
profissionais da política e entregá-lo ao homem comum, ou é, antes de tudo, um
instrumento de controle, vetor de uma revolução a partir do topo que capta uma
quantidade enorme de dados a fim de utilizá-los para fins políticos?
É nessa segunda internet e nos personagens que primeiro a
entenderam e usaram como tal que se concentra "Os Engenheiros do
Caos", de Giuliano Da Empoli, um livro imprescindível para entender o
Brasil e o mundo de hoje.
Com intuições brilhantes sobre a natureza humana, a internet
e a democracia na era do narcisismo de massa, ele mergulha nos bastidores das
campanhas que elegeram (Obama), Donald Trump, Boris Johnson, Matteo Salvini,
Bibi Netanyahu e Viktor Orbán, deslocando a luta pela conquista de votos, “da
tentativa de unir eleitores em torno de um denominador comum numa lógica que
tendia a marginalizar os extremistas do passado, para a arte de inflamar
paixões no maior número possível de grupelhos que valoriza e põe os extremistas
no centro do processo de hoje” (Bolsonaro é só uma menção, pois o livro é de
dezembro de 2019).
Os cientistas de dados, mesmo usando só as chaves
classificatórias do Facebook e similares, conseguem operacionalizar campanhas
com milhares de grupos sendo bombardeados por mensagens personalizadas, até
contraditórias entre si, sem que os “alvos” jamais fiquem sabendo o que têm em
comum com os demais apoiadores dos “seus” candidatos. A campanha do Brexit, por
exemplo, foi feita com o disparo de bilhões de mensagens sob medida: para os
animalistas, uma sobre as regulamentações europeias que ameaçam os direitos dos
animais; para os caçadores, sobre as regulamentações europeias que, ao
contrário, protegem os animais; para os libertários, mensagens sobre o peso da
burocracia de Bruxelas; para os estatistas, sobre os recursos desviados do
Estado de bem-estar para a União, e assim por diante...
A coisa começa na Itália, “o Vale do Silício do populismo”.
É do vazio da morte da velha política pela Operação Mãos Limpas que surge
Gianroberto Casaleggio, “mistura de John Lennon pós-moderno com a cibercultura
californiana” que, com o país procurando algo novo, é o primeiro a abrir a
porta para a ação política radical por fora dos partidos e do parlamento, “esse
monumento aos mortos”, com o site do Movimento 5 Estrelas, “uma ideia à procura
de quem a encarnasse”. Ele arma de algoritmos a exploração do “sentimento de
raiva que atravessa todas as sociedades, alimentado por aqueles que pensam ter
sido lesados, excluídos, discriminados ou insuficientemente ouvidos”. E para
sua surpresa quem virá a encarná-la são outsiders histriônicos cuja estrela
sobe tanto mais vertiginosamente quanto mais “incorretas” e iconoclastas são
suas manifestações e o escândalo com elas do establishment e da mídia
tradicional, que “cai em todas as suas provocações”.
O refino da fórmula dá-se com a parceria de Steve Bannon e
Andrew Breitbart, jornalista para quem “o establishment americano está
impregnado de uma cultura progressista hipócrita e elitista que se apoia no
Democrat Media Complex para traçar as fronteiras do justo e do injusto, do
dizível e do indizível, pautar o discurso publico e perseguir ferozmente os
hereges”.
“The Donald”, com sua longa experiência de televisão, logo
se dá conta de que as eleições americanas são “um reality show cheio de maus
atores” e, com seu talento midiático, o slogan “Deixe-me ser o porta-voz da sua
ira” e uma absoluta falta de cerimônia para com “todos quantos se orientam
pelas preocupações do New York Times com os banheiros transgênero e os
casamentos homossexuais, operou o milagre de fazer de um bilionário
nova-iorquino a voz dos excluídos de todos os 44 Estados americanos que não são
banhados nem pelo Pacífico, nem pelo Atlântico”.
Da Empoli enxerga as afinidades eletivas perfeitas entre o
mundo das redes e alguma forma de democracia direta, e tem todas as razões do
mundo para temer esta generalista, violenta e sem filtros, que entidades como o
Movimento 5 Estrelas querem impor e tem os mesmos vícios que a que o PT tentou
nos enfiar goela abaixo diversas vezes durante o reinado da dinastia
Lula.
Como quase toda a geração dos que viveram sob a hegemonia
ininterrupta da esquerda nos últimos cem anos, Da Empoli parece não ter nenhuma
visibilidade do sistema de democracia semidireta sólida e transparentemente
ancorada na vontade popular, defendida de eventuais pendores autoritários pela
pulverização do poder proporcionada pelo sistema de eleição distrital pura que
se pratica nos Estados Unidos desde a virada do século 19 para o 20. Não há
dúvida que a vida conectada levará a algum modelo de democracia mais direta no
futuro imediato. Mas para todos quantos souberem escolher a boa não há nada a
temer. Liberados de uma política que hoje é bandalha porque pode, se estarão
habilitando, ao ganhar o poder de mandar nela, a dar o mesmo salto espetacular
que os Estados Unidos deram no século 20 tanto em matéria de liberdade quanto
de afluência material.
JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
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