Mesmo neste cenário dramático, com a aproximação rápida dos
20 mil óbitos, com recordes sendo batidos todos os dias, temos de conviver com
o fantasma da subnotificação, que pode multiplicar as estatísticas oficiais por
números ainda incalculáveis no Brasil, e com a corrupção, que se faz
tristemente viva entre nós.
A Lei Nacional da Quarentena (Lei 13.979/2020) demonstrou
sintonia com as necessidades brasileiras quando, além de afrouxar as regras das
licitações para contratações públicas visando a salvar vidas, estabeleceu
simultaneamente o dever de serem criados sites específicos para a prestação de
contas das contratações emergenciais durante a pandemia – ainda não cumprido
por diversos governos estaduais, como os de São Paulo e Rio de Janeiro, por
exemplo.
Já se noticiam episódios de corrupção concreta, como a aquisição
de respiradores superfaturados oriundos de empresa que se dedica à venda de
vinhos em Manaus, onde o governador enfrenta dois pedidos de impeachment. No
Rio, um ex-juiz governador decreta sigilo no que diz respeito às contratações
públicas da saúde, o que torna ainda mais grave o fato de não ter criado o site
específico para prestar contas.
Descobriu-se também o fornecimento de R$ 4 milhões em
aparelhos falsificados em Mato Grosso e de outros 200 respiradores igualmente
superfaturados, pagos adiantadamente em Santa Catarina, provenientes de pessoa
jurídica dedicada ao ramo do prazer.
Mas tudo isso jamais poderá ser classificado como novidade
num país que já conheceu a “máfia dos vampiros”, das ambulâncias e das
sanguessugas, e por aí vai.
Corrupção já é algo devastador e erosivo do sistema
democrático em tempos de normalidade institucional. Como classificar os atos de
corrupção cometidos durante a excepcionalidade pandêmica?
Sergio Moro, que como juiz julgou casos graves de corrupção
e outros crimes contra o patrimônio público investigados pela Lava Jato, por
sua trajetória foi convidado a assumir o cargo de ministro da Justiça e
Segurança Pública. Depois de abdicar de um cargo vitalício e de sua carreira de
22 anos na magistratura, parece ter sido expelido do governo, menos de um ano e
quatro meses depois, e apontou, ao sair, graves atitudes de interferência nada
republicanas na Polícia Federal (PF) pelo presidente, agora investigadas pelo
STF.
Nesta “nova era” pós-Moro, o diretor-geral da PF “dos sonhos”
do presidente foi barrado pelo STF com base nos princípios da impessoalidade e
da moralidade, em razão das graves acusações e dos vínculos pessoais entre o
nomeado e o nomeante.
O sucessor de Moro ponderou com acerto que a não entrega de
vídeo referente à reunião ministerial de 22 de abril, comprobatória das
interferências, poderia ter caracterizado ato de obstrução da Justiça e
transformado o episódio no Watergate brasileiro, aludindo ao escândalo de
corrupção estadunidense que culminou com a renúncia de Richard Nixon em 1974.
O vídeo foi, afinal, entregue. Mas, poucos meses antes, este
mesmo governo que resistiu a entregar o vídeo editou a Medida Provisória (MP)
928, dificultando o acesso a informações públicas em plena pandemia, a qual foi
derrubada em caráter liminar pelo STF, que fez prevalecer a advertência de
Bobbio: “Governo da democracia é o governo do poder público em público”.
Aos domingos, várias “manifestações”, na contramão universal
do isolamento, têm incluído na “pauta” o fechamento do STF e do Congresso –
tirania, com protagonismo do chefe do Executivo federal.
Hoje, após acerto com o Centrão, ao qual foram cedidos
poderosos cargos do segundo e do terceiro escalões e que é integrado por
dezenas de parlamentares investigados e processados por atos de corrupção, para
se vacinar do impeachment, o governo já começa a contabilizar esses votos a seu
favor, não obstante ter jurado solenemente que jamais repetiria esse tipo de
prática política, que os manuais de ciência política podem chamar de tudo,
menos de presidencialismo de coalizão.
Dessa forma, a cada dia que passa fica mais claro que o
discurso de campanha anticorrupção do então candidato, hoje presidente, nada
era além de peça de marketing político para instrumentalizar seus apoiadores
nas redes sociais.
Observe-se que não se avançou na agenda anticorrupção.
Exemplo: punição do caixa 2 eleitoral, discutido desde as Dez Medidas contra a
Corrupção. Na última quarta editou-se a surpreendente MP 966, que torna impunes
agentes públicos por atos de corrupção cometidos durante a pandemia.
Não creio em capas heroicas ou balas de prata para enfrentar
a corrupção. A corrupção jamais será extinta, mas pode ser controlada com
investimento em educação, transparência e consciência. E se a sociedade vestir
essa camisa, se unir e lutar sem precisar de heróis. Se as instituições forem
modernizadas e eficientes, incluindo partidos democráticos, íntegros e
transparentes e reforma política, se houver exercício da cidadania pleno nas
escolhas eleitorais, conscientizando as pessoas em volta, fiscalizando o
cumprimento da lei e buscando os necessários ajustes nas regras do jogo.
DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROCURADOR DE JUSTIÇA, É O IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO
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