A cena: Bolsonaro ergue a caixa de um medicamento; assim
como se, capitão que é, igualmente ovacionado pelos espectadores, fosse Carlos
Alberto levantando a Copa do Mundo. A embalagem de cloroquina então
transformada na Jules Rimet — cujo destino de derretimento não deve ser
possibilidade excluída ao porvir de um remédio apregoado como panaceia pelo
presidente-milagreiro.
Derretem as vidas. No presente. Um fato.
Houve também quem comparasse o episódio a uma passagem do
filme “Rei Leão”, em que o primata Rafiki ergue o recém-nascido Simba, filho do
rei Mufasa. Um gesto para noticiar à comunidade que o reino tinha herdeiro — um
ritual, pois, para informar sobre o futuro. Um movimento de segurança e
esperança. De vida; para a vida.
A comparação com a liturgia de Bolsonaro é, portanto,
descabida. Sim, o ato do presidente teve linguagem religiosa. Não me
surpreenderia se alguém ali, diante daquela missa campal, esperasse o Messias
andar sobre o espelho d’água. Bolsonaro emulava a comunhão. Na prática, porém,
anticomunhão; porque aquela congregação esmagava, atraídos pelo egoísmo do
pregador, vítimas potenciais do vírus traiçoeiro. Um gesto-ritual para noticiar
à comunidade de crentes que o pastor, pura versão, negava-se aos fatos — um
gesto, pois, para informar sobre o passado permanente. Um movimento de negação
e temeridade. De doente; para a doença.
O presidente celebrava a eucaristia bolsonarista — a própria
ação de graças, essencialmente personalista, do autocrata. Uma distorção do
sacrifício. A terceirização do sacrifício por meio do culto ao negacionismo e à
desinformação; um ritual de pretensão sagrada em cuja irresponsabilidade publicitária
só havia morte — e nenhuma ressurreição.
A caixa do remédio glorificada pelo sacerdote Bolsonaro não
era o corpo do mito Bolsonaro; corpo este que ali estava protegido, isolado,
seguro. A embalagem de medicamento elevada pela crendice bolsonarista não era a
carne daquele salvador eleito que se imolava por seus fiéis; povo este que ali
estava espremido, exposto, vulnerável.
Não era o “Tomai, todos, e comei. Isto é o meu corpo”. Não.
Mas o “Tomai, todos, e comei. Isto é o vosso corpo”. O corpo de milhares de
mortos pela peste.
A esta antimissa se associaram as Forças Armadas. Gilmar
Mendes tocou num nervo. Pode-se discutir o emprego de genocida para definir a
responsabilidade de Bolsonaro sobre a morte de brasileiros. A responsabilidade,
entretanto, existe. A negligência resulta. A crendice resulta. Influenciam —
condicionam — e resultam.
Deve-se mesmo questionar que a pancada, ainda que correta,
venha da boca de um ministro do Supremo, a quem não caberia se comportar como
comentarista político porque, objetivamente, talvez venha a julgar algo
relativo à omissão de Bolsonaro ante a pandemia.
Não é adequado. Não foi a isto, contudo, que reagiram os
militares. Tampouco à afirmação de que teriam se associado a um genocídio. Mas
à constatação — factual — de serem agentes já inseparáveis de um governo de
cujo conjunto curandeiro decorrem mortes. O problema é a verdade.
As Forças Armadas não precisavam pontificar neste altar.
Pouco tinham a ver com Bolsonaro, tipo condenado à baixa patente, um
sindicalista agitador, conspirador de quartel, que propunha a quebra da
hierarquia a bombas — do qual o Exército se livrara desde havia muito, mas de
quem se reaproximaria deliberadamente, por cima, sobretudo a partir de gestões
políticas do general Villas-Boas.
Para muito além dos limites impostos a instituições de
Estado, as Forças trabalharam para estrelar o projeto de poder bolsonarista; e
isto a ponto de um general da ativa — submetendo consigo o Exército — aceitar o
papel de cavalo para que o presidente pudesse ser o ministro da Saúde. Aí está.
Como aí está o ministro Ramos, general da ativa quando afirmou — atribuindo
poder moderador à sua casta — a tese de que se poderia desrespeitar decisão de
tribunal superior se considerada “não justa”.
As Forças podem agora desfiar o rosário. É falso que lhes
cairia no colo — de qualquer maneira — um fracasso de Bolsonaro; que, por ser
militar, levaria consigo a imagem das Armas. É falso. O sujeito deixara o
Exército em 1987, defenestrado, reinventando-se em político defensor dos interesses
corporativos de cabos e soldados, mais próximo das polícias que das Armas — às
quais bastaria guardar a distância que a impessoalidade republicana demarca.
As Forças Armadas, no entanto, desejaram integrar o governo.
E agora temem que suas fardas sejam manchadas — investigadas no Tribunal Penal
Internacional — pela maneira como o governo a que dão (flexível) espinha lidou
com a peste.
Bolsonaro jogou nos braços do Exército — na figura do vice Mourão — a Amazônia em chamas e a dizimação (o genocídio?) dos povos indígenas. E jogou na conta do Laboratório do Exército a fabricação milionária de cloroquina — o Exército, produtor do comprimido por meio do qual a morte é comungada, também pode erguer a taça. Amém.
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