SÃO PAULO Uma onda obscurantista subverteu as
liberdades da experiência digital global ao criar tecnologias de manipulação em
massa capazes de influenciar o jogo político em direções extremistas.
A tática de marketing político, invisível e silenciosa,
favoreceu a
ascensão de líderes populistas da direita nacionalista, e pode
configurar um ponto de inflexão na trajetória da chamada democracia liberal em
países tão distintos quanto Índia, Reino Unido, EUA, Itália, Indonésia e
Brasil.
A instrumentalização de redes sociais e aplicativos de
comunicação instantânea como armas de desinformação hipersegmentadas foi
descoberta por jornalistas profissionais. Muitos deles se tornaram, então,
alvos de campanhas virtuais de difamação deflagradas pelos mesmos mecanismos
que denunciaram.
No Brasil, foi a
premiada jornalista Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha,
que jogou luz no uso dessa estratégia
digital ilusionista durante a campanha presidencial de 2018, que
elegeu Jair
Bolsonaro.
Agora, ela explora o tema em profundidade e extensão,
relacionando o caso brasileiro a episódios contemporâneos pelo mundo em seu
novo livro, “A Máquina do Ódio” (Companhia das Letras).
Nele, a repórter destrincha o manual desse novo aparato
digital clandestino, tão fascinante quanto assombroso, operado por empresas de
tecnologia de dados a serviço dos novos tecnopopulistas.
Suas técnicas inundam redes sociais e grupos de apoiadores
com conteúdos falsos, distorcidos ou estridentes e polêmicos, criados para
manipular percepções, abafar informações indesejáveis ou detratar quem os
questiona ou se coloca em seu caminho.
Os esquemas envolvem a obtenção ilegal de dados de usuários
que, agrupados de acordo com seus perfis, passam a ser bombardeados por
campanhas inflamatórias, cujos conteúdos apelam para medos e ressentimentos
comuns ao grupo, construindo inimigos ao vilanizar grupos, religiões e
ideologias políticas.
“Populistas privilegiam mensagens tóxicas, que geram
polarização, isolando seu grupo de apoiadores da influência do contraditório e
distraindo-o de notícias e debates desfavoráveis”, diz a autora, que neste
mês ganhou
o prêmio Maria Moors Cabot, da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia,
por sua carreira como repórter e pelo seu trabalho investigativo. A distinção é
a mais importante dada a jornalistas estrangeiros nos EUA.
No livro, Patrícia amarra os bastidores de seu trabalho
jornalístico na cobertura das eleições americanas de 2008, 2012 e 2016, dos
pleitos indianos de 2014 e 2019 e da corrida presidencial brasileira de 2018,
que utilizaram o big data em diferentes modelos, cada vez menos republicanos.
Ao acompanhar os passos de sua investigação, descobrimos um
universo digital paralelo à promessa de amplo acesso à informação que a
internet parecia entregar.
Patrícia nos mostra que táticas elaboradas para influenciar
usuários sobre o que é verdade e sobre aquilo que realmente importa
atravessaram sorrateiramente esse éden tecnológico, amparados pelo silêncio de
gigantes como o Facebook.
Ao compreender melhor as dinâmicas de desinformação e
manipulação, a jornalista torna evidente por que o ataque à mídia profissional
e as campanhas por sua deslegitimação são parte essencial da máquina do ódio.
As informações com lastro (que passaram pelos processos de checagem e
rechecagem) e de confronto com seu contraditório são estraga-prazeres desse
jogo.
Célebre por reportagens em territórios conflagrados da
África e do Oriente Médio, onde a atividade jornalística implica riscos
objetivos, sempre à espreita, Patrícia ironicamente acabou se tornando alvo de
ataques no ambiente virtual e no seio de seu próprio país.
Ela é a autora da reportagem bomba, publicada às vésperas do
segundo turno das eleições presidenciais de 2018, que revelava o financiamento de
disparos em massa de mensagens de ataque ao PT e a seu candidato no pleito,
Fernando Haddad, por empresários apoiadores da candidatura de Bolsonaro. A
prática é ilegal.
Agências de checagem apontaram que alguns dos conteúdos
falsos mais disseminados durante a campanha foram sobre fraudes em urnas
eletrônicas e sobre a famigerada “mamadeira de piroca”, apontada como criação
do governo petista para combate à homofobia nas escolas.
A revelação por Patrícia do esquema
de disparos em massa nas eleições incitou o exército virtual
bolsonarista a atacá-la. A gravidade e o volume das ameaças fizeram com que a
jornalista passasse um período acompanhada por um segurança, expediente ao qual
não havia recorrido nem em coberturas de guerra.
Um ano depois das primeiras reportagens, a
repórter foi alvo de ofensas proferidas em plena CPMI das Fake News, no Congresso,
quando Hans River do Nascimento, ex-funcionário da Yacows (agência de
disparos de mensagens em massa por WhatsApp), mentiu em depoimento, insinuando
que a repórter da Folha queria trocar informações por sexo.
O episódio foi mencionado pelo presidente e pelo deputado
Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e gerou uma enxurrada de memes e deep fakes
misóginos contra a profissional. Eles estão sendo processados pela jornalista
na Justiça.
Patrícia dedica um capítulo à saga de jornalistas mulheres
que, como ela, foram atacadas pelo presidente e seus apoiadores, como Miriam
Leitão, Vera Magalhães, Constança Rezende e Marina Dias.
“A Máquina do Ódio” termina com uma reflexão sobre o
jornalismo profissional, seus princípios e técnicas, e sobre como a pandemia da
Covid-19 tem ressignificado o papel da mídia como parte do sistema de freios e
contrapesos do poder e como guardiã da democracia contra autocratas
interessados em esconder informações da opinião pública.
“Se a imprensa não resistir aos governos populistas, à manipulação
das redes sociais e à recessão econômica, vão sobrar apenas blogs e sites
partidários, que não relatam nem analisam fatos, apenas corroboram crenças.
Isso não é informação”, conclui Patrícia.
Basta lembrar que, sem a investigação da própria autora,
assim como aquelas de outros jornalistas profissionais que a sucederam, talvez
ainda ignorássemos a existência desta máquina do ódio na política brasileira.
A Máquina do Ódio
Autora: Patrícia Campos Mello
Editora: Companhia das Letras
196 páginas (R$ 39,90)
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