A mudança constante é companheira de viagem da democracia.
Quanto mais complexas ficam as sociedades, mais se acentua a dinâmica
democrática e aumentam suas tensões internas.
Isso dificulta a compreensão da “crise da democracia”, hoje
proclamada mundo afora. Aquilo que sempre se transforma não estaria em crise
permanente, reorganizando-se sem cessar? Se novos atores entram em cena e as
instituições precisam se adaptar aos novos ambientes socioculturais, por que a
democracia permaneceria “estável”?
Aquilo que se transforma não o faz necessariamente em
sentido positivo. Crises não são produtos automáticos: podem derivar, por
exemplo, de um golpe ditatorial, que silencia o que estava em mudança e altera
o fluxo da vida. Os novos tempos podem ser sombrios, desorganizar mais que
organizar, fazendo as “novidades” acentuarem o que não funciona a contento, implicando
que as instituições e as práticas políticas não produzam bons resultados.
A democracia está hoje desafiada. Há uma crise no plano
sistêmico, institucional, provocada pela disjunção entre a vida e os sistemas,
pela “desconstrução” dos partidos e das lideranças políticas. As organizações
políticas tradicionais e o modo usual de fazer política colidem com o modo como
as pessoas vivem. O “sistema” não entrega o que dele se espera. As injustiças,
a desigualdade, o racismo, o sexismo, que se evidenciam sem parar, fazem a
cidadania entrar em atrito aberto com o que está instituído. Sempre foi assim,
mas nos últimos anos, ao lado do aumento da insegurança e do medo paranoico,
houve uma ampliação da insatisfação e da disposição de contestar.
Há também uma crise de valores: a ideia de representação
perdeu atração e a política institucional se desvalorizou aos olhos dos
cidadãos. O desejo de liberdade e participação faz vibrar a cultura
democrática, mas não se compõe com o sistema político vigente. Ao contrário, os
cidadãos veem nele uma importante causa dos males. Assentados quase sempre nos
interesses econômico-sociais mais poderosos, os governos não conseguem agir em
benefício dos interesses gerais.
O principal fator que explica essa crise tem que ver com a
complexidade da sociedade atual, que problematizou os mecanismos de formação da
vontade coletiva e de tomada de decisões. A globalização capitalista, por sua
vez, reduziu a autonomia relativa dos Estados-nação e impôs uma pauta única
para a gestão da economia, agravando as disfunções sistêmicas. Como a estrutura
social se recompôs, embaralharam-se as identidades classistas, transferindo
problemas de reconhecimento e estabilidade para os partidos, que sempre
controlaram o jogo político. Não só a democracia, mas tudo o que está
“organizado” (a família, a escola, a empresa) entrou em crise.
Líderes e movimentos “desgarrados” das tradições
democráticas passaram a corroer o sistema político por dentro, pondo em curso
uma degradação nominalmente democrática da democracia. Um veneno tóxico começou
a ser injetado cotidianamente na cidadania e na opinião pública.
Num ambiente mais complexo e menos democrático, o Estado –
como aparelho de intervenção, coordenação e regulação – perdeu eficácia. A
atuação dos governos e dos serviços públicos fica com custos mais elevados, sem
que com isso se obtenham melhores resultados.
Esse quadro foi dramatizado pela pandemia, que evidenciou a
distância existente entre o Estado político-administrativo e a população. Os
sistemas nacionais de saúde foram postos à prova e em muitos deles faltou
coordenação, um problema de liderança política e visão estratégica.
É esse o caso brasileiro. A presença de um governo
reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim. Filho da
crise, explora o discurso antissistema, que ressoa socialmente, e se aproveita
da desorganização política dos democratas. Desqualificado, sem base parlamentar
nem plano de ação, viu-se diante da necessidade de fazer que o sistema
funcione. Não está dando certo.
O clima criado pelos “iliberais” não é sem consequências.
Favorece a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático,
dificultando sua autoconsciência e sua organização. Paralisados pelas
dificuldades, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes
brigando com sua sombra e autoimagem. Dispersam-se, quando deveriam se unir.
Parte do descontentamento e da indignação que move os
cidadãos tem que ver com o fato de o sistema existente não prover resultados
que atendam às expectativas sociais. As pessoas sentem-se desprotegidas,
inseguras, carregadas de expectativas que não são atendidas pela política. A
exasperação social bate à porta.
O sistema político, com seus partidos e atores, não tem gás
para formular um programa de ação e uma articulação que recomponha a
governabilidade e reforme as instituições. A sociedade terá de se movimentar, o
que a crise sanitária dificulta.
A democracia está em crise. Mas é o único caminho que temos
para explorar.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
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