“A noite cai apenas para aqueles que por ela se deixam
encobrir.”
Cornelius Castoriadis, The End of Philosophy?
Quis o tempo que eu escrevesse esse artigo para ser
publicado na data em que se completam dez anos da morte de Dionisio Dias
Carneiro, meu mentor, professor e uma cabeça privilegiada. Dionisio nunca
aceitou dogmas de qualquer natureza: ao contrário, sempre questionou princípios
da economia. Era um professor sensacional, um grande intelectual público e
alguém que tinha a capacidade de incomodar no bom sentido, forçando seus pares
a pensar. A noite na epígrafe acima não é, assim, uma metáfora para a morte –
ao menos não nesse artigo –, mas uma metáfora para a preguiça de pensar.
Deixa-se encobrir pela noite quem perde a curiosidade. Já a curiosidade nos
desacomoda da poltrona em que podemos permanecer a contemplar o passado. O espírito
dionisíaco, que desacomoda e convida ao prazer de pensar, continua vivo em
muitos que conviveram com Dionisio. Não em todos.
Algumas pessoas acomodaram-se no passado. O momento atual
requer que o passado passe e dê abertura para o questionamento de princípios
que deixaram de valer. A economia não é como as ciências naturais, em que
mecanismos metabólicos, ainda que complexos, são governados por estruturas e
leis inabaláveis. A glicólise é a glicólise, as diversas vias de sinalização
celular dependem da ação inibidora ou ativadora das enzimas. Se algo para de
funcionar como deveria, o corpo adoece. A economia é uma construção social,
como a política. Suas estruturas têm traços de longa duração, mas também se
moldam ao momento.
Uma das consequências desse caráter ao mesmo tempo
resistente e plástico é a necessidade de economistas buscarem um ajuste mais
fino entre conhecimento e sensibilidade, pois é fácil ceder à falsa impressão
de que há leis imutáveis na economia e não perceber as mudanças. Elas são
raras, porém, acontecem, como na crise de 2008 e, mais ainda, nessa proveniente
da pandemia. Nesses momentos o chão se move sob os nossos pés, abalando bases
em que se assentavam antigas regras econômicas.
Considerem a segunda metade dos anos 1990. Naquela época, o
Brasil tinha acabado de estabilizar a inflação – diga-se – às custas de juros
muitos elevados, crítica que Dionisio sempre encabeçou. Países emergentes
viviam de crise em crise, enquanto as economias maduras se escoravam em
políticas monetárias de sintonia fina. Foi uma era de juros internacionais mais
elevados, por certo muito mais elevados do que os vistos no mundo pós-2008. A
crise de 2008 acabou com a sintonia fina das taxas de juros como modo de
calibragem da política monetária nos países maduros. As políticas “não
convencionais”, hoje mais do que convencionais, deslocaram aquele mecanismo sem
que muitos macroeconomistas tivessem sido capazes de antever suas
consequências. Uma teoria enrijecida e mecânica perdeu para a prática, que
responde rapidamente aos desafios do mundo. E a história se repete hoje, com a
nova crise que enfrentamos.
No novo ambiente que surgiu 20 anos após a crise asiática de
1997/98, a compreensão sobre os países emergentes também mudou. Ao contrário do
passado, esses países já não viviam mais de crise em crise – à exceção da
Argentina, é claro, por razões muito particulares ao país. No contexto
internacional de juros muito baixos, a capacidade de endividamento dos
emergentes se alterou, bem como se alteraram as suas estruturas, que antes
desancoravam rapidamente os preços, levando aos processos inflacionários de
outrora. Isso não é dizer que emergentes como o Brasil tenham a mesma
capacidade de endividamento dos países maduros, uma incompreensão frequente de
fiscalistas que insistem nessa comparação. Países como o Brasil ainda precisam
ser bastante cautelosos, mas a natureza da cautela mudou.
Em ambiente de juros próximos de zero nos países emissores
das principais moedas de reserva, o tempo para corrigir dívidas muito elevadas
foi dilatado. As relações entre câmbio e inflação se alteraram. Já não se sabe
ao certo quais são os principais determinantes da inflação. Vejam o Brasil: há
tempos a dívida é alta, o gasto é elevado, e a volatilidade cambial perdura.
Mas a inflação? Mesmo antes da pandemia, a inflação já não reagia a essas
variáveis como há 30 anos. Por que? Não tenho a resposta, assim como não tenho
resposta para a dilatação do tempo da dívida. As respostas que têm circulado só
me lembram de reaprender com Dionisio a cultivar as perguntas, que costumam ser
mais importantes. São elas que determinam o alcance do pensamento.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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