Tentaram “cancelar” Steven Pinker. Ele é um intelectual com
jeito de roqueiro das antigas. Linguista em Harvard, autor de alguns livros
monumentais (“Os Anjos Bons de Nossa Natureza” e “Iluminismo Agora”). Sua
ideia-força é a de que estamos melhorando, como civilização, seja na redução
global da violência, respeito a direitos, incidência da guerra. Isso irrita
muita gente.
Uma carta assinada por um grupo de acadêmicos pedia à
Associação Americana de Linguística (LSA) sua destituição das listas de membros
prestigiados. O caso virou símbolo (e uma ótima síntese) do que define a
cultura do cancelamento.
Em primeiro lugar era um grupo grande. Algumas centenas de
assinaturas. Para cancelar você precisa de muita gente. Gente gritando, como
nas antigas praças de execução pública. A carta contra Pinker também fazia
questão de dizer que não era um cancelamento. Perfeito. Ninguém cancela dizendo
que está cancelando. A turba está apenas fazendo “justiça”.
Havia também o anacronismo. Pinker era acusado por alguns
tuítes feitos anos atrás (o primeiro deles em 2015), mas tudo curiosamente
apresentado como “no exato momento” em que ocorrem as mobilizações
antirracistas.
E por fim, a pretensão de verdade. Pinker era acusado de
“deturpar” fatos. Na cultura do cancelamento não há a ideia de “divergência”.
Ele poderia ter apenas uma outra visão ou simplesmente estar sugerindo a
leitura de um artigo no The New York Times. O jogo é: eu sei o que você deveria
ter dito e as palavras que você deveria ter usado. E sei porque tem uma
multidão do lado de cá que vai fazer você entender isso.
No final não funcionou. A LSA disse que não iria cancelar
Pinker e que não era sua missão “controlar a opinião de seus membros”. Pinker
se deu bem. Não fosse um cara renomado talvez fosse demitido ou coisa pior,
como tantos outros.
Há quem veja nas técnicas de cancelamento uma saudável
“supervisão” da sociedade sobre os indivíduos (para que andem na linha,
imagino). A tese seria a mesma que sustenta a lógica do derrubamento de
estátuas: dado que haja uma multidão (do lado “certo”, obviamente) disposta a
jogar alguma coisa no lixo, é justo que ela seja jogada.
O cancelamento não tem a ver com justiça, mas com poder. Em
regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente. Pede-se à
universidade que o descontrate, à TV que o demita, ao jornal que não o publique
e ao evento que o “desconvide”.
Essa lógica virou feijão com arroz no mundo público. Contra
ela se formou um grupo de intelectuais que vão de Noam Chomsky a Deirdre
McCloskey. Publicaram um documento curto que vai direto ao ponto: “editores são
demitidos por publicar artigos controversos; jornalistas são impedidos de
escrever sobre certos temas; professores são investigados por citar obras de
literatura em sala de aula”.
No final, sugerem que “precisamos de uma cultura que deixe
espaço para experimentação, riscos e até erros”. Não vai rolar, pensei. A
lógica do cancelamento é feita exatamente para que você não arrisque. Diga
apenas o que pode ser dito. E o erro é uma impossibilidade, dado que há sempre
uma “intenção” e algo indesculpavelmente grave em tudo que é dito.
Difícil não perceber como tudo isto é uma reedição da antiga
lógica da “patrulha”. Ela apenas ganhou escala. E não é feita pelo Estado ou
pela direção do partido, mas pela multidão. A multidão patrulheira. Suas armas
são a difamação e a pressão econômica.
Há dois riscos envolvidos nisso tudo. O primeiro é a
distração sobre aquilo que realmente importa combater. O segundo é o cultivo da
conformidade e do medo na cultura pública. Medo dos temas que não devem ser
tratados, dos livros ou dos dados que não se deve citar e das perguntas que não
devem ser feitas.
Talvez seja um ponto onde Pinker errou. O teórico que gosta
de mostrar, com uma infinidade de dados, que o mundo sempre melhora talvez
precise reconhecer que, ao menos em um aspecto —bastante sombrio— estamos
piorando.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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