Como um expoente da cultura nacional e um teórico do
Estado-força. O intelectual que deu forma a essa operação foi Francesco Ercole,
futuro reitor da Universidade de Palermo e ministro da Educação da Itália
fascista. Em seu livro de 1917, Lo Stato nel pensiero di Niccolò Machiavelli [O
Estado no pensamento de Nicolau Maquiavel], Ercole inseria as ideias do
secretário florentino no próprio processo de construção do Estado italiano,
apresentando-o, desse modo, como um precursor do elitismo e do nacionalismo.
A chave dessa primeira leitura de Ercole estava na redução
que promovia do conceito maquiaveliano de virtù à energia da vontade e à força,
consideradas substâncias vivas do Estado. O futuro professor de Palermo achava,
entretanto, necessário distinguir uma virtù passiva, capaz de fundar e
reordenar o Estado, de uma virtù ativa, a qual dá forma ao povo e à
coletividade, permitindo, desse modo, manter o Estado. De acordo com Ercole,
essa virtù ativa não seria atributo coletivo, e sim individual, “isto é, de
apenas um indivíduo, ou, no máximo de um número restrito de indivíduos”.
O caráter fortemente elitista e autoritário desse discurso
ficaria evidente nos escritos que Ercole publicou na década de 1920 na revista
Politica, dirigida pelos fascistas Alfredo Rocco e Francesco Coppola, depois
reunidos no livro La politica di Machiavelli, de 1926. Nesses textos, Maquiavel
era mobilizado para combater o liberalismo individualista e alinhar-se com uma
concepção orgânica da política na qual os interesses individuais e egoístas
seriam subordinados a uma vontade moral encarnada no Estado.
Os artigos de Ercole influenciaram diretamente Benito
Mussolini, o qual desejou escrever uma tese de láurea que deveria ser
apresentada durante uma planejada homenagem na qual receberia o título de
doutor honoris causa da Universidade de Bolonha. Ao encontrar Ercole, então
reitor da Universidade de Palermo, em maio de 1924, il duce o abraçou e contou
seu projeto: “Estou estudando os escritos sobre Maquiavel que você publicou na
Rivista Politica. São muito úteis para a tese que estou preparando”. Muito embora
o chefe de governo tivesse pensado até no título – Vademecum per l’uomo di
governo [Vademecum para o homem de governo] –, a tese não foi finalizada.
Seu prefácio, entretanto, foi publicado pela revista
Gerarchia em abril de 1924, com o título Preludio al Machiavelli. Mussolini
pretendia encontrar em Maquiavel um contemporâneo e um conselheiro do fascismo
htttps://revistacult.uol.com.br/home/tag/fascismo). Do florentino, il duce
destacava sua forte percepção negativa a respeito da natureza humana: “homens, segundo
Maquiavel, são tristes, mais afeiçoados às coisas que ao próprio sangue,
prontos a mudar sentimentos e paixões”. Essa natureza egoísta tornaria o povo
incapaz de produzir uma ordem política. Mussolini lia Maquiavel com os olhos de
Gustave Le Bon, para quem a multidão de indivíduos “inconscientes e brutais” é
capaz de destruir civilizações mas não de construir uma. Esse juízo, para o
autor do Preludio, continuaria válido contemporaneamente.
Desse diagnóstico da natureza humana, Mussolini deduzia uma oposição
entre o povo e o príncipe, os indivíduos e o Estado. Se uma multidão de
indivíduos submetidos às próprias paixões produziria a desordem e o caos,
caberia ao Estado promover a ordem e acabar com a anarquia. Os indivíduos
tenderiam “a desobedecer às leis, a não pagar os impostos, a não fazer a
guerra”. O Estado deveria obrigá-los a agir de modo adequado. O conceito de
política que organizava o Preludio inspirava-se nas ideias de Francesco Ercole
e não ocultava seu caráter autoritário: “política é a arte de governar os
homens, isto é, de orientar, utilizar, educar suas paixões, seus egoísmos, seus
interesses, em vista de questões de ordem geral”, escrevia il duce. Para
Mussolini, a ideia de que o poder do Estado é uma emanação livre da vontade do
povo, pedra angular do liberalismo, não passava de ficção e ilusão. Sem o
Estado, nem sequer existiria esse ente denominado povo, apenas uma multidão de
indivíduos.
O Preludio al Machiavelli era um prefácio à fascistização do
regime político italiano, o que de fato ocorreria poucos meses depois. A
abertura do texto já expunha seu argumento. Mussolini narrava ter conhecido uma
pessoa das legiões negras de Ímola, a qual possuía uma espada com um dístico
atribuído a Maquiavel: “Com palavras não se mantêm os Estados”. A oposição
entre o povo e o Estado encontraria solução apenas no uso da força e da
coerção: “É, portanto, imanente […] o dissídio entre a força organizada do
Estado e a fragmentação dos indivíduos e dos grupos. Regimes exclusivamente
consensuais nunca existiram, não existem, provavelmente nunca existirão”.
A consolidação do fascismo
O Preludio mussoliniano reabriu a polêmica sobre o legado de Maquiavel na
Itália. A qualidade da literatura produzida nesse contexto variou muito.
Giuseppe Prezzolini, por exemplo, concluiu seu livro Vita di Nicolò Machiavelli
fiorentino (1927), transformando seu personagem principal em um contemporâneo,
o qual teria procurado “dar bons conselhos a [Francesco] Crispi, do qual
gostava de seu espírito autoritário e de seus lances arriscados, mas por quem
nem sempre foi ouvido.
Preparou para [Antonio] Salandra a declaração de guerra
contra a Áustria e acompanhou [Benito] Mussolini em sua Marcha sobre Roma”. No
mesmo ano, Luigi Russo escreveu duas notas sobre Maquiavel, nas quais, embora
não citasse Mussolini, criticava explicitamente as interpretações dos fascistas
Giovanni Gentile e Francesco Ercole. Em 1931, foi a vez de Russo publicar seus
Prolegomeni a Machiavelli e uma antologia de escritos maquiavelianos que
organizou. O sucesso editorial dos textos de Russo despertou a ira das
autoridades fascistas e o próprio Francesco Ercole, na época ministro da
Educação, proibiu a divulgação daquela antologia nas escolas italianas.
Nesse ínterim que vai do Preludio de Mussolini aos Prolegomeni
de Russo, o regime fascista havia se consolidado. Em 10 de junho de 1924, o
deputado socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado e assassinado por uma
squadra fascista. Seu corpo foi encontrado apenas em 16 de agosto. O
envolvimento de Mussolini no episódio era evidente. Seguiu-se uma grave crise
política, que pôs o governo fascista em sério risco. Em meio à intensa polêmica
que envolveu o chamado delitto Matteotti, Mussolini acabou por rejeitar o
título de honoris causa. Todas as solenidades já haviam sido, entretanto,
preparadas pelas autoridades universitárias e o diploma emitido, mas ele nunca
foi assinado nem entregue ao homenageado.
Apenas a partir de 3 de janeiro de 1925, com seu discurso no
Parlamento, Mussolini retomou o controle da situação e lançou a contraofensiva,
encerrando a crise política que se arrastava desde o assassinato de Matteotti.
Mais tarde, com as chamadas “leis fascistíssimas” de 1925 e 1926, promoveu uma
enorme restrição das liberdades políticas e civis, consolidando um novo regime
fascista e mandando para a cadeia seus opositores. Com o novo regime,
realizava-se a virtù ativa, preconizada por Ercole, e a multidão de indivíduos
era finalmente submetida à força do chefe de Estado.
A ideia de um Maquiavel fascista é evidentemente anacrônica.
A ideia de estados (stati, no original, com letra minúscula), que abre O
príncipe, é fortemente pré-moderna e muito mais ambígua do que Mussolini dá a
entender. E, se o florentino em vários momentos de sua obra identificou o
estado com o príncipe, ele também o identificou com o povo que governa na
República – em especial com o povo que governava sua amada Florença, antes de
os Medici a subjugarem. Mas o Maquiavel de Mussolini não poderia ser popular.
Para tornar-se partidário do fascismo, antes foi preciso que ele fosse
convertido à força em elitista autoritário.
*Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre-docente da mesma instituição.
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