Desde junho de 2016, encontra-se paralisado, na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara Federal, um projeto de lei, do já então
deputado Eduardo Bolsonaro, que pretende tornar crime o elogio, a pregação, a
apologia das ideias do comunismo e do regime delas decorrente. A pena prevista
pode chegar a 30 anos de prisão, conforme a gravidade do delito.
No documento que justifica o projeto, o deputado tenta
justificar também os crimes de tortura praticados durante a ditadura no Brasil,
de 1964 a 1985, considerando que o terrorismo político havia antecedido à
tortura, como se esta fosse uma justa e bastante resposta àquele. “O Estado
brasileiro teve de usar seus recursos para fazer frente a grupos que não
admitiam a ordem vigente”, diz o documento.
Além das ideias comunistas, o projeto também considera crime
“fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,
ornamentos, distintivos ou propaganda que usem a foice e o martelo ou quaisquer
outros meios para fins de divulgação favorável ao comunismo”. Num esforço de
isenção, o documento considera igualmente criminosas as ideias e a propaganda
nazistas.
Não sei dizer se o projeto de Eduardo é anterior ou
posterior àquele da “pílula do câncer”, o projeto de seu pai, então também
deputado, pedindo o reconhecimento dos milagrosos efeitos do tal comprimido
contra a doença fatal. Este foi um dos três únicos projetos de lei apresentados
por Jair Messias, durante seus 28 anos de estrela do chamado baixo clero,
titulares muito especiais de nossa Câmara Federal. Mas sendo ou não
simultâneos, os dois formam uma indiscutível dupla do barulho legislativa.
São projetos que bem podiam ter sido pensados e promovidos
pelo líder deles todos, o presidente americano Donald Trump, incentivador e
avalista dos passos mais significativos do populismo autoritário que o mundo
vem desenvolvendo nesses últimos tempos, na diluição das democracias
convertidas em espetáculos grotescos de piadas e notícias falsas, em redes
sociais. É preciso criminalizar as iniciativas ideológicas que se opõem ao
sistema, não deixar que elas se manifestem à vontade, com normalidade.
Esse momento de radicalização das ideologias serve às ações
que esses populistas autoritários desejam consagrar. Não se trata apenas de uma
estratégia simplista de cobrar a radicalização das ideias; mas, disfarçado por
trás dessa máscara, do esforço de evitar todo o debate de referência política,
ética e cultural, um modo de evitar o confronto de ideias proibindo-as
simplesmente.
Acusar todo progressista de comunista ou todo conservador de
fascista, atirar todo discurso de esquerda nos braços do projeto comunista ou
todo discurso de direita nos do fascista é eliminar as possibilidades que se
encontram ao longo da distância entre um e outro. A humanidade levou séculos
pensando alternativas a modos de viver, rompendo com as hierarquias produzidas,
ao longo desse tempo, em ações e ideias que a faziam progredir apesar de tudo.
Não é possível, nem seria justo, eliminarmos tudo o que se encontra entre os
dois extremos, eliminarmos as nuances, as combinações, os erros que teremos que
cometer para o nosso bem. E, talvez, para o bem de todos.
Se o fascismo é um exercício de poder discricionário sobre o
outro, não vi recentemente nada mais fascista, em nosso ambiente social, do que
aquilo que o desembargador Eduardo de Siqueira fez com Cícero Hilário, o
corretíssimo guarda municipal de Santos. As consequências são menos graves do
que as do Holocausto ou as das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Mas a
democracia abriu um espaço para tornar mais grave, para nós, aquilo que nos
acontece num momento especial. Tornou-se talvez impossível evitar um sentimento
de prioridade ao que nos sucede.
Há cerca de um mês, Ascânio Seleme nos contou uma história
sobre Muhammad Ali que eu, seu velho fã, não conhecia. Em junho de 1967, quando
Ali, convocado para lutar no Vietnã, recusou-se a integrar as Forças Armadas
americanas, 11 dos mais renomados desportistas negros dos EUA se reuniram com
ele para demovê-lo dessa decisão. O chamado “Ali Summit” durou quatro horas e,
ao seu final, os 11 atletas saíram apoiando o boxeador. Quem estava com a
verdade? Ou: como estabelecer a verdade?
Durante a nossa ditadura, como escreveu José Casado, o governo militar “ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos e as empresas lucravam”. Se havia ganhos concretos, acionistas e dirigentes multinacionais estavam pouco se importando com o que acontecia no Brasil, não era da conta deles. Nos EUA, uma lei, no fim dos anos 1980, ressarciu moradores japoneses, vítimas de discriminação civil durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os ex-escravizados, em muito maior número, sofrendo durante muito mais tempo, nunca foram recompensados com nada. Os diversos julgamentos serão sempre relativos e nunca decisivos. Se os aprisionarmos em correntes de qualquer espécie, nos enganaremos sempre.
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