A cada vez mais provável vitória de Joe Biden sobre Donald
Trump mudará tudo nos EUA — menos a atitude diante da China. Consolida-se, nos
EUA, um consenso bipartidário sobre o imperativo de estabelecer limites à
expansão da influência chinesa. Não é uma “segunda Guerra Fria”, pois a nova
potência, ao contrário da URSS, é ator de magnitude maior na economia mundial.
Mas, como na Guerra Fria, desenha-se uma estratégia de contenção de longo
prazo.
Com Xi Jinping, a “diplomacia do sorriso” ficou no passado.
“A China já não teme ninguém. Acabaram-se, para não voltar mais, os tempos em
que o povo chinês subordinava-se a outros e vivia dependente de caprichos
externos.” As palavras de um alto responsável do governo chinês para Hong Kong,
que se referiam à nova Lei de Segurança Nacional, podem ser estendidas à
projeção militar no Mar da China Meridional, ao ambicioso programa de
modernização bélica e à agressiva diplomacia econômica sintetizada no projeto
da chamada Nova Rota da Seda.
A China que já não sorri coloca em evidência o tema da emergência
de uma grande potência numa ordem internacional construída pela principal
potência anterior. O exemplo da ascensão de uma “potência satisfeita”, que vê a
ordem existente como moldura adequada para alcançar seus objetivos nacionais,
como o Japão do Pós-Guerra, já não se aplica ao caso chinês. A China tornou-se
uma “potência insatisfeita”, como a Alemanha do entre-guerras, que enxerga a
Pax Americana como obstáculo a seus interesses nacionais.
Multiplicam-se as superfícies de atrito. Os EUA deslocam grupos
navais para os mares do entorno chinês e promovem o boicote internacional das
empresas chinesas de equipamentos de rede. O Quarteto, uma associação informal
de segurança constituída por EUA, Japão, Austrália e Índia, inicia programas de
estreita cooperação de inteligência. Aproximam-se do grupo o Reino Unido e a
França, que decidiram banir a Huawei de suas redes 5G. Já a Índia, cuja
rivalidade com a China renovou-se após o sangrento choque fronteiriço no
Himalaia, anunciou uma megacompra de material bélico russo de mais de US$ 5,3
bilhões.
A Alemanha ressente-se da erosão da Aliança Atlântica
provocada pelo isolacionismo de Trump, temendo converter-se em presa fácil dos
tentáculos econômicos chineses. A saída encontrada por Angela Merkel é a
repetição da aposta no projeto da unidade europeia, como nas encruzilhadas de
1950 (Comunidade do Carvão e do Aço) e de 1990 (Tratado de Maastricht). No
Conselho Europeu, abandonando sua proverbial ortodoxia fiscal, aprovou algo
como um “Plano Marshall da Europa”: o fundo de recuperação econômica de 750
bilhões de euros, dos quais 390 bilhões distribuídos na forma de doações. Os
alemães sabem que o relógio da história não gira ao contrário, mas aguardam
esperançosamente um triunfo de Biden para reativar a parceria entre Europa e
EUA.
Biden não será Trump, mas tampouco reeditará a política de
deliberada ambiguidade formulada por Barack Obama diante da China. O provável
futuro presidente tende a reduzir a ênfase na guerra comercial para concentrar
esforços na contenção militar e no cerceamento das empresas chinesas de 5G. O
“divórcio” tecnológico entre EUA e China seguirá, em ritmo acelerado, tanto no
campo dos equipamentos quanto no dos softwares. Contudo, ao contrário de Trump,
Biden rejeitará o nacionalismo do “America First” e buscará a cooperação
diplomática da União Europeia.
Durante a Guerra Fria, os EUA ergueram ao redor da URSS um
“cordão sanitário” de alianças político-militares que se estendiam da Europa ao
Extremo Oriente. O “cordão sanitário” que se esboça em torno da China é
diferente, pois seus componentes são militares e tecnológicos e, ainda, porque
o parque industrial chinês não será desligado da economia mundial.
A globalização não sai de cena, mas ingressa em nova etapa, crivada pelo antagonismo sino-americano. Quando, livre de Ernestos e Olavos, o Brasil recuperar a capacidade de pensar racionalmente sua política externa, terá de encarar os complexos dilemas de uma ordem em complexa mutação.
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