Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três
Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do
Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir
no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro
na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de
Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos
termos, mas acertou no diagnóstico.
O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da
expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado,
parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que
define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à
morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não
há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por
mais condenável que ela seja.
Assim, a irritação dos militares é compartilhada por
magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo
às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores,
mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a
palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam,
tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para
a Nação.
Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar
Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério
da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia
avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da
ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde
foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.
A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um
cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas
decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento
social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é
comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem
ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas
vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?
Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de
Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados,
mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões
de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no
Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o
que o governo federal manda.
Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas
Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar
seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa
aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para
passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.
O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.
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