Se a frase não tivesse uma conotação tão negativa para ele e
seus seguidores, diria que Bolsonaro saiu do armário. Melhor então dizer que
mostrou sua face e, se quiserem imagem mais antiga, rasgou a fantasia.
Creio que um marco temporal da metamorfose foi a prisão de
Fabrício Queiroz. Uma dose de criptonita na veia do mito de milhões de
brasileiros que contavam com sua força para derrubar o velho regime e acabar
com a corrupção.
Naquele manhã, Bolsonaro despertou não como o personagem de
Kafka, sentindo-se uma barata. Percebeu que era apenas mais um animal na
floresta de Brasília. Não era do mesmo tipo dos que se financiam com dinheiro
de empresas. Mas sabia que seu esquema ficaria evidente para qualquer analista
político, independentemente do grau de miopia.
Vários mandatos na família, pouco mais de uma centena de
funcionários, uma boa parte fantasma, e estava resolvido o problema financeiro
de campanha e melhoria de vida, capitalizando em negócios imobiliários. Era
preciso reencontrar o Centrão, um grupo do qual nunca esteve distante. Seus
partidos ao longo dos 28 anos de mandato sempre foram fisiológicos. E o Centrão
não significa apenas garantia contra impeachment. Há ali toda uma sabedoria de
como se dotar de uma pele de elefante para se escudar das críticas.
Bolsonaro sempre foi um combatente ideológico. Ele só adotou
o tema da corrupção quando percebeu que essa era a grande fragilidade da
esquerda. Nesse ponto, tentei até dizer a ele nas entrelinhas de uma
entrevista, Bolsonaro não difere do movimento militar de 64. Eles falavam em
combater a subversão e a corrupção. Mas terminaram apoiando Paulo Maluf, numa
tentativa de derrotar Tancredo Neves. É um tipo de pensamento onde existem os
nossos corruptos e os deles.
A investida contra Moro por não conseguir intervir na PF do
Rio era destinada exatamente a evitar que sua família e amigo fossem
incomodados. Não adiantou, Fabrício Queiroz foi incomodado no refúgio de
Atibaia em junho.
Agora não há mais mistério. Bolsonaro abandona a fantasia e
sabe que perde também uma fração de eleitores que acreditava em seu programa e
consegue constatar que foi para o espaço. Somadas às perdas com o desastroso
negacionismo diante do coronavírus, era preciso buscar outro norte, ou outro
Nordeste para sobreviver. É uma fórmula consagrada pelas pesquisas de
popularidade.
Um instrumento sempre denunciado pela direita como uma forma
de compra de eleitores, o Bolsa Família ressurge como tábua de salvação. Por
que não inventar um Bolsa Família para chamar de seu?
E lá se vai Bolsonaro com um chapéu fake de boiadeiro
cavalgando seu novo destino. Aparentemente, um caminho sem pedras. O Congresso
dando apoio em troca de cargos, eleitores agradecidos ao seu novo benfeitor.
Mas há nuvens no horizonte. Onde conseguir dinheiro para financiar esse projeto
de reeleição que, na aparência, é um projeto social? Pedaladas no Orçamento
podem resultar em impeachment. Mas nem sempre.
Será preciso jogar fora duas importantes bandeiras: a
racionalização da máquina e a venda de estatais improdutivas. Esta semana já
foram para o espaço os responsáveis por elas no governo. Os pilotos saltaram do
avião. Como supor que seja possível ratear cargos nas estatais e,
simultaneamente, pedir que as forças políticas aceitem sua passagem para a
iniciativa privada?
Um presidente apoiado no Centrão não será novidade.
Bolsonaro não se interessa tanto pelo Líbano quanto pelas fórmulas do MDB de
Temer para manter a fidelidade de deputados em caso de processo. A tendência
será a de um governo como os outros, apoiado no toma lá dá cá, e estourando o
teto de gastos para sobreviver politicamente.
O perigo não é só a bancarrota. A própria classe média pode
de novo se enfurecer e surgir por aí um novo salvador para implodir o sistema e
acabar com a corrupção. Conheço esse filme desde as últimas décadas do século
passado. Collor, o caçador de marajás, fracassou; Lula, prometendo introduzir a
ética na política, acabou se desvencilhando dela.
Não eximo ninguém de sua responsabilidade pessoal. Mas essa
armadilha histórica da qual não conseguimos escapar merecia uma reflexão.
Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com nosso
sistema político?
A sucessão de salvadores da pátria não é um fenômeno
qualquer. Com Bolsonaro, ela nos jogou nos perigosos limites da democracia.
Artigo publicado no jornal O Globo em 17/08/2020
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