terça-feira, 18 de agosto de 2020

O CHOCALHO ESTRIDENTE DA SERPENTE

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES
A tirania não se afere pelo êxito do bote, mas pelas tentativas de inocular toxinas antidemocráticas. O capitão Jair Bolsonaro só abafou a sibila golpista depois de perder parte do serpentário que virou as fossas contra a cilada institucional. A meta autoritária, porém, segue inalterada. Mudou apenas o método. Agora, ela envenena os subterrâneos do Ministério da Justiça e da Abin, menos iluminados. Os rastros confirmam a propensão totalitária, apesar da afasia tática. A mudez é útil também para os depósitos da primeira-dama e o uso de grana viva em transações imobiliárias do clã.
Além de pregar a intervenção nos bastidores, na reunião narrada pela reportagem da revista “Piauí”, o capitão repetiu a retórica da ruptura de maneira despudorada em 5 oportunidades e publicamente. A espiral autoritária desavergonhou-se em 19/4, em frente ao quartel general do exército. O capitão, em uma espécie de teste, disse que não negociaria “nada” e repeliu a “velha política”. Se referia ao mesmo centrão, agora enrodilhado poder como antídoto contra a picada do impeachment.
No dia 3/5 o capitão afirmou no Planalto ter as forças armadas. Em 22/5, mesmo dia da reunião onde ameaçou intervir, após cogitada a apreensão do celular de Bolsonaro, Augusto Heleno endossou: “…O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Depois de capitular ao veto a Alexandre Ramagem na PF, em 28/5, insistiu: “Acabou, porra”. Em 27/5, Eduardo Bolsonaro disse que a ruptura era certa. Não era “se”, mas “quando”. Em 17/6 a bravata atingiu o ápice ao reagir contra a quebra de sigilo de aliados: “Eles estão abusando… está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. O capitão se referia ao STF. No mesmo dia, Flávio Bolsonaro recusou “radicalizar”. No dia seguinte Fabrício Queiroz foi capturado. A constrição forçou a camuflagem e silenciou o toque dos corneteiros da quartelada. Mas, na muda, a conspiração seguiu.
As víboras, mesmo acossadas, não perdem a peçonha. Dissimulam a índole traiçoeira em nome da sobrevivência até recuperar as condições de atacar. O comportamento insidioso serpentou para a arapongagem em dois cobris do poder. Na Abin e no Ministério da Justiça. Agentes públicos rastejaram em uma selva clandestina para investigar ilegalmente 579 servidores como integrantes do “movimento antifascismo”. O monitoramento vazou. Um incidente de segurança que pode atirar o ministro André Mendonça no banco dos réus, independente das pinças do procurador-geral.
Inspirado nos escamosos métodos do SNI, invadiu-se vidas privadas com as terminologias da ditadura, como confidencialidade, sigilo etc. A tocaia foi armada pela Secretaria de Operações Integradas do MJ e gerou um dossiê com 400 páginas de bisbilhotice. O titular desse DOPs necrosado foi sacrificado. Ainda não disse quem encomendou a espreita criminosa. A ministra Cármen Lúcia, que investiga a KGB tabajara foi dura: “A gravidade do quadro descrito, que – a se comprovar verdadeiro – escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”.
O deputado estadual Douglas Garcia, íntimo do ofidário, teria dito à justiça paulista que o deputado federal, Eduardo Bolsonaro, defensor do AI-5 e embaixador frustrado, entregou um relatório com nome de antifascistas aos EUA. Se comprovada, a traição é punida lei 71770/83. Não por outra razão, o militar brasileiro David Almeida Alcoforado, brigadeiro do ar, foi apresentado ao presidente norte-americano Donald Trump, pelo almirante Craig Faller como um vassalo em mudança de pele: “os brasileiros estão pagando para ele vir para cá e trabalhar para mim“. A fala foi em 10 de julho na Flórida.
Na Abin o veneno foi extraído preventivamente pelo STF. Agência Brasileira de Inteligência – do amigo Alexandre Ramagem – tinha sido autorizada a fazer devassas. Um decreto aumentou o número de cargos, permitiu o treinamento de indicados políticos e escancarou o acesso injustificado de arapongas para xeretar informações sigilosas dos cidadãos. Entre eles dados fiscais, bancários, telefônicos, inquéritos policiais de também do COAF. Por 9×1 o STF barrou a nova arapuca arbitrária. O recado de que arapongagem é crime antecipa o julgamento do caso do Ministério da Justiça. O STF tem sido o predador impiedoso contra as sinuosidades ditatoriais.
Na outra ponta, depois do vai e vem da auditoria na lava Jato, determinada por Augusto Aras, remanesce o temor de procuradores de que a PGR queria usar politicamente a base de dados da lava jato. As consultas informais à receita federal e ao COAF, para prospecções ilegais, são legados da lava jato e já vitimou até ministros do STF e familiares. Por causa delas, Deltan Dallagnol responde a tantas representações no CNMP. Duas estão pautados para esta semana.
A toca de espionagem clandestina é conhecida. Gustavo Bebbiano atribuiu o SNI paralelo ao vereador Carlos Bolsonaro. Na reunião de 22/4, o próprio capitão confessou ter um serviço secreto de informações. “O meu particular funciona. Os ofi… que temos oficialmente, desinforma. E voltando ao … tema prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações”. A briga pelo controle da PF as últimas operações, contra inimigos do governo, aumentam a suspeição sobre um charco de perseguição política.
O ninho de cobras do SNI e seus filhotes na ditadura, além das mortes, torturas, desaparecidos e exílios montou um serpentário repressor baseado na captação e montagem de dossiês clandestinos. Foram mais de 300 mil presas. A vacina contra o veneno fascista veio no Habeas Data, na Constituição de 1988. É a proteção da intimidade contra atos abusivos, ilícitos ou fraudulentos, como frisado em um acórdão do STF.
Brasília está infestada de cobras, malfeitores e outros peçonhentos. O estudante picado por uma naja descortinou um matagal do tráfico de serpentes venenosas na capital. Ele e outros 10 foram indiciados por comércio ilegal de animais. Nos serpenteios do capitão, até aqui, sobram transgressões, mentiras, silêncios suspeitos, dissimulações, mas nenhuma conversão real à democracia. O guizo despótico, apesar de furtivo e sub-reptício, segue ressoando. É o fim da picada.
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