Há lei no País e ela precisa ser cumprida. Parece um tanto
óbvia essa afirmação, mas nos tempos atuais tem sido frequente que o Judiciário
precise lembrar ao Executivo federal tal verdade. Recentemente, o Supremo
Tribunal Federal (STF) reafirmou que o compartilhamento de dados dos 42 órgãos
que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) – o que inclui
Polícia Federal, Receita Federal, Banco Central e Secretaria de Operações
Integradas do Ministério da Justiça – com a Agência Brasileira de Inteligência
(Abin) deve respeitar a Constituição e os termos da Lei 9.883/1999, a Lei da
Abin. A decisão define que todo e qualquer pedido de compartilhamento de
informações da Abin a órgãos do Sisbin deve ser fundamentado, com as razões que
explicitem o interesse público da medida.
“Qualquer fornecimento de informação, mesmo entre órgãos
públicos, que não cumpra rigores formais do Direito e nem atenda ao interesse
público configura abuso de direito e contraria a finalidade legítima posta na
Lei da Abin. Mecanismos legais de compartilhamento de dados e informações são
postos para abrigar o interesse público, não para abrigar interesses
particulares. Solicitação de informações da Abin a órgãos devem ser
acompanhados de motivação. Não é possível ter como automática a requisição sem
que se saiba por que e para quê”, disse a relatora da ação, ministra Cármen
Lúcia.
Segundo os autores da ação, Rede Sustentabilidade e Partido
Socialista Brasileiro (PSB), a interpretação dada à Lei 9.883/1999 pelo Poder
Executivo tem desrespeitado direitos fundamentais, com trocas indevidas de
dados com a Abin. O tema ganhou especial relevância depois que o presidente
Jair Bolsonaro editou o Decreto 10.445/2020, no mês passado. O decreto
presidencial fez mudanças na estrutura da Abin; entre elas, a ampliação de
cargos de confiança e a criação de uma nova entidade, o Centro de Inteligência
Nacional.
Os autores da ação afirmam que, com a mudança proposta pelo
governo, bastaria, por exemplo, uma requisição do diretor-geral da Abin para
ele ter conhecimento de informações sigilosas. O Supremo entendeu que, no caso
de informações obtidas por quebra de sigilo ou por escuta telefônica, não é
possível o compartilhamento com a Abin, mesmo que possa em tese existir
interesse público no envio de dados à agência. A decisão lembra que o acesso a
esses dados exige prévia autorização judicial.
Mais do que criar empecilhos ao Poder Executivo – como às
vezes equivocadamente se alega –, o Supremo simplesmente aplica o que está
explícito na Constituição. Por exemplo, o art. 5.º do texto constitucional
assegura que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso,
por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal”.
Há um ponto especialmente importante na decisão do Supremo,
relativo à proteção do Estado Democrático de Direito, em que todos, também as
autoridades públicas, estão sob a lei. Segundo o STF, mesmo nas hipóteses
cabíveis de fornecimento de informações e dados à Abin, é imprescindível a
instauração de procedimento formal, com a existência de sistemas eletrônicos de
segurança e registro de acesso. Dessa forma, permite-se controlar o cumprimento
dos requisitos legais, também para efeitos de responsabilização, em caso de
omissão, desvio ou abuso. Esse procedimento, além do requisito da motivação do
pedido de compartilhamento, permite que o Poder Judiciário exerça eventual
controle de legalidade. Pois não há nem deve haver atos ou autoridades acima da
lei.
A decisão do Supremo foi de caráter liminar. O julgamento
definitivo deverá ocorrer após a manifestação das autoridades envolvidas na
ação, em especial o Congresso Nacional. Num momento de ofensas e ameaças ao
Supremo, a colegialidade, especialmente nas decisões envolvendo outros Poderes,
é elemento de estabilidade e fortalecimento institucional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário