No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e
fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para
protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o
crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio
aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos
brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente
americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada
reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar
prefeitos e governadores.
Em julho, a retórica incendiária do presidente americano
inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas
manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram
acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump
passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos,
em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes
federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência
injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro
os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a
respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu
governo.
Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a
pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no
páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.
Parece uma reedição da estratégia de Richard Nixon, que se
elegeu em 1968 prometendo pulso firme contra protestos de jovens universitários
e negros. A semelhança, porém, é apenas aparente. Trump não busca mobilizar o
conservadorismo tradicional. Sua aposta é a de um extremista, disposto a
conflagrar o país e testar, ao máximo, os limites da institucionalidade. Mais
do que o candidato da “lei e da ordem”, ele flerta com a ideia de ser o líder
de um povo pronto a empunhar armas para defender a América contra “terríveis
ameaças”.
A incitação de Trump à violência e a desfaçatez de suas
teorias conspiratórias vêm se agravando. Ainda nas primárias republicanas para
a eleição de 2016, ele disse que pagaria do próprio bolso a fiança de seus
apoiadores que “descessem o cacete” em quem perturbasse os seus comícios. Na
campanha para as eleições daquele ano, afirmou que se perdesse seria sinal de
fraude, e se recusou a dizer se aceitaria o resultado. Em 2017 disse haver
“gente boa” entre supremacistas brancos que brutalizaram manifestantes
contrários. Em 2019 perguntou à multidão que o ouvia na Flórida como deveriam
ser recebidos os imigrantes que tentassem cruzar a fronteira do México com os
Estados Unidos. Sorriso no rosto, escutou a resposta em coro: “Com tiros, com
tiros”. No mesmo ano, acusado na Câmara por crimes de responsabilidade, brandiu
a ameaça de uma guerra civil se o Congresso o impedisse de seguir na
Presidência.
Com a aproximação das eleições de novembro, a retórica incendiária
de Trump está chegando ao paroxismo: além de defender, semanas atrás, que a
polícia atirasse em quem promovesse saques, desatou a repetir que há uma grande
fraude em preparação, até mesmo com interferência de governos estrangeiros, nos
votos que serão enviados pelo correio, uma prática antiga e segura em vários
Estados americanos. Bolsonaro há muito propaga a lenda de ser a urna eletrônica
um convite à manipulação dos resultados eleitorais.
Refletindo sobre o cenário político americano, Fareed Zakaria,
em recente artigo no jornal The Washington Post, advertiu para o perigo que
Trump hoje representa para a alternância pacífica de poder nos Estados Unidos.
Zakaria tem razão em se preocupar: se o resultado for apertado, é provável que
o presidente americano de tudo faça para “melar o jogo”. Felizmente, no Brasil
existe segundo turno, inexiste o colégio eleitoral e não há contagem manual de
votos.
Talvez mais preocupante seja o fato de que, mesmo com o
eventual despejo de seu líder da Casa Branca, o trumpismo siga vivo ou mesmo se
torne mais virulento. Não deve passar despercebida a desenvoltura crescente de
grupos paramilitares imbuídos da missão de proteger a “verdadeira América”,
onde os brancos mandam, os pretos obedecem e os imigrantes não entram. Mutatis
mutandis, o mesmo “patriotismo” sectário, excludente e truculento se encontra
nos bolsões mais radicais do bolsonarismo.
Estimulada pela retórica anti-imigrante de Trump, cresce a
atuação de grupos de vigilantes que assumem funções de polícia de fronteira na
divisa com o México. Atiçados pelo presidente, outros grupos de cidadãos
armados se somam à intimidação e repressão contra os protestos antirracistas.
Em nível local, não são raras as alianças implícitas entre esses grupos e
forças policiais.
Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há
diferenças, é claro, mas também semelhanças inquietantes.
DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO
GACINT-USP
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